A Epopéia de Gilgamesh
Prólogo
Gilgamesh, rei de Uruk
Proclamarei ao mundo os feitos de Gilgamesh. Eis o homem para
quem todas as coisas eram conhecidas; eis o rei que percorreu as
nações do mundo. Ele era sábio, ele viu coisas misteriosas e conheceu
segredos. Ele nos trouxe uma história dos dias que antecederam o
dilúvio. Partiu numa longa jornada, cansou-se, exauriu-se em trabalhos
e, ao retornar, descansou e gravou na pedra toda a sua história.
Quando os deuses criaram Gilgamesh, deram-lhe um corpo
perfeito. Shamash, o glorioso sol, dotou-o de grande beleza; Adad, o rei
da tempestade, deu-lhe coragem; os grandes deuses tornaram sua
beleza perfeita, superior à de todos os outros seres, terrível como um
enorme touro selvagem. Eles o fizeram dois terços deus e um terço
homem.
Em Uruk ele construiu muralhas, grandes baluartes, e o
abençoado templo de Eanna, consagrado a Anu, o deus do
firmamento, e a Ishtar, a deusa do amor. Olhai-o ainda hoje: a parte
exterior, por onde corre a cornija, tem o brilho do cobre; sua parte
interior não conhece rival. Tocai a soleira, ela é antiga. Aproximai-vos de
Eanna, a morada de Ishtar, nossa senhora do amor e da guerra: é
inigualável, não há homem ou rei que possa construir algo que se
equipare. Subi as muralhas de Uruk; digo, caminhai por cima delas;
observai atentamente o terraço da fundação, examinai o trabalho de
alvenaria: não é feito com tijolos cozidos, e bem feito? Os sete sábios
lançaram suas fundações.
1. A chegada de Enkidu
Gilgamesh correu o mundo, mas, até chegar a Uruk, não
encontrou quem pudesse opor-se à força de seus braços. Entretanto, os
homens de Uruk murmuravam em suas casas: "Gilgamesh toca o sinal
de alarme para se divertir; sua arrogância, de dia ou de noite, não
conhece limites. Não há pai a quem tenha sobrado um filho, pois
Gilgamesh os leva todos, até mesmo as crianças; e, no entanto, um rei
deveria ser um pastor para seu povo. Sua luxúria não poupa uma só
virgem para seu amado; nem a filha do guerreiro nem a mulher do
nobre; no entanto, é este o pastor da cidade, sábio, belo e resoluto."
Os deuses escutaram o lamento do povo. Os deuses do céu
gritaram para o Senhor de Uruk, para Anu, o deus de Uruk: "Uma deusa
o fez forte como um touro selvagem; ninguém pode opor-se à força de
seus braços. Não há pai a quem tenha sobrado um filho, pois Gilgamesh
os leva todos; e é este o rei, o pastor de seu povo? Sua luxúria não
poupa uma só virgem para seu amado, nem a filha do guerreiro nem a
mulher do nobre." Depois de Anu ter escutado seu lamento, os deuses
gritaram para Aruru, a deusa da criação: "Vós o fizestes, oh, Aruru, criai
agora um outro igual; que seja tão parecido com ele quanto seu
próprio reflexo; que seja seu segundo eu, coração tempestuoso com
coração tempestuoso. Que eles se enfrentem e deixem Uruk em paz."
A deusa então concebeu em sua mente uma imagem cuja
essência era a mesma de Anu, o deus do firmamento. Ela mergulhou as
mãos na água e tomou um pedaço de barro; ela o deixou cair na
selva, e assim foi criado o nobre Enkidu. Havia nele virtudes do deus da
guerra, do próprio Ninurta. Seu corpo era rústico, seus cabelos como os
de uma mulher; eles ondulavam como o cabelo de Nisaba, a deusa
dos grãos. Ele tinha o corpo coberto por pêlos emaranhados, como os
de Samuqan, o deus do gado. Ele era inocente a respeito do homem e
nada conhecia do cultivo da terra.
Enkidu comia grama nas colinas junto com as gazelas e rondava
os poços de água com os animais da floresta; junto com os rebanhos de
animais de caça, ele se alegrava com a água. Mas um dia, no poço,
ele se viu frente a frente com um caçador, pois os animais de caça
haviam entrado em seu território. Por três dias eles se encontraram
frente a frente, e o caçador se intimidou. Voltou para casa com sua
caça e permaneceu mudo, paralisado de terror. Seu rosto estava
alterado como o de alguém que retorna de uma longa viagem. Com o
coração cheio de pasmo, ele falou a seu pai: "Pai, há um homem,
diferente de todos os outros, que desce das colinas. Ele é o homem mais
forte do mundo, parece um dos imortais do céu. Vagueia pelas colinas
com os animais selvagens e come grama; vagueia por tuas terras e
desce até os poços d'água. Tenho medo e não ouso dele me
aproximar. Ele tapa os buracos que cavo e destrói as armadilhas que
preparo para a caça; ele ajuda as feras a escapar e agora elas
escorregam por entre meus dedos."
Seu pai abriu a boca e disse ao caçador: "Filho, em Uruk vive
Gilgamesh; ninguém jamais o venceu, ele é tão forte quanto uma
estrela do céu. Vai a Uruk, encontra Gilgamesh e exalta-lhe a força
deste selvagem. Pede-lhe que te arranje uma rameira, uma dissoluta do
templo do amor; retorna com ela e deixa que seu poder subjugue este
homem. Da próxima vez que ele descer para tomar água no poço, ela
estará lá, nua; e quando a vir, acenando para ele, vai abraçá-la, e os
animais da selva passarão a repudiá-lo."
O caçador partiu para Uruk e se dirigiu a Gilgamesh, dizendo: "Um
homem diferente de todos os outros anda vagueando por nossos
pastos; ele tem a força de uma estrela do céu e tenho medo de
aproximar-me dele. Ele ajuda as presas a escapar e tapa e destrói as
minhas armadilhas." Gilgamesh disse: "Caçador, volta, leva contigo uma
rameira, uma filha do prazer. No poço ela se desnudará; ao vê-la
acenando, ele a tomará em seus braços e os animais da selva
certamente passarão a repudiá-lo."
O caçador então retornou, levando consigo a rameira. Após três
dias de viagem, eles chegaram ao poço e lá se sentaram; a rameira e o
caçador se sentaram frente a frente e se puseram a esperar pela
chegada dos animais. Por dois dias o caçador e a rameira ficaram
esperando, mas no terceiro dia eles chegaram; chegaram para beber
água e Enkidu estava entre eles. As pequenas criaturas selvagens
regozijaram-se com a água, e entre elas Enkidu, que comia grama junto
com as gazelas e nascera nas colinas; e ela o viu, o selvagem, vindo
das distantes colinas. O caçador disse à rameira: "Lá está ele. Agora,
mulher, desnuda teus seios, não tenhas vergonha; anda, acolhe o seu
amor. Deixa que ele te veja nua, deixa que possua teu corpo. Quando
ele chegar perto, tira tua roupa e deita-te com ele; ensina ao selvagem
tuas artes de mulher, para que, quando venha murmurar-te palavras de
amor, os animais da selva, que compartilharam sua vida nas colinas,
passem a repudiá-lo."
Ela não teve pudores em tomá-lo em seus braços, ela se despiu e
acolheu de bom grado o corpo ávido de Enkidu. Ele se deitou sobre ela
murmurando palavras de amor, e ela lhe ensinou as artes da mulher. Por
seis dias e sete noites eles ali ficaram deitados, pois Enkidu se esquecera
de seu lar nas colinas; depois de satisfeito, porém, ele voltou para os
animais selvagens. Mas agora, ao vê-lo, as gazelas punham-se em
disparada; as criaturas agrestes fugiam quando delas se aproximava.
Enkidu queria segui-las, mas seu corpo parecia estar preso por uma
corda, seus joelhos fraquejavam quando tentava correr, ele perdera
sua rapidez e agilidade. E todas as criaturas da selva fugiram; Enkidu
perdera sua força, pois agora tinha o conhecimento dentro de si, e os
pensamentos do homem ocupavam seu coração. Então ele voltou e
sentou-se ao pé da mulher, e escutou com atenção o que ela lhe disse:
"És sábio, Enkidu, e agora te tornaste semelhante a um deus. Por que
queres ficar correndo à solta nas colinas com as feras do mato? Vem
comigo. Vem e te levarei à Uruk das poderosas muralhas, ao
abençoado templo de Ishtar e Anu, do amor e do céu; lá vive
Gilgamesh, que é forte, e como um touro selvagem domina e governa
os homens."
A fala da mulher agradou a Enkidu; ele ansiava por ter um
companheiro, alguém que pudesse compreender seu coração.
"Vamos, mulher, leva-me a esse templo sagrado, à casa de Anu e de
Ishtar, ao lugar onde Gilgamesh domina e governa seu povo. Eu
audazmente o desafiarei; gritarei em Uruk: 'Sou o mais forte daqui, vim
para mudar a velha ordem, sou aquele que nasceu nas colinas, sou
aquele que é de todos o mais forte.'"
Ela disse: "Vamos, e deixa que ele te veja o rosto. Sei muito bem
onde se encontra Gilgamesh na grande Uruk. Oh, Enkidu, lá todos se
vestem magnificamente, todos os dias são de festa, e que maravilhosa
visão fornecem os rapazes e as jovens. Como é suave e doce seu
cheiro! Todos os poderosos estão despertos pela cidade. Oh, Enkidu, tu,
que amas a vida, farei com que conheças Gilgamesh, um homem de
muitos humores; tu o conhecerás em seu radiante apogeu de virilidade.
Seu corpo é perfeito em força e maturidade; ele jamais descansa, nem
à noite nem de dia. Ele é mais forte que tu, por isso põe de lado essa
bravata. Shamash, o glorioso sol, concedeu-lhe favores, assim como
Anu dos céus, e Enlil; e Ea, o sábio, deu-lhe discernimento e inteligência.
Eu te digo, mesmo antes de teres deixado a vida selvagem, Gilgamesh
saberá de tua chegada através de sonhos."
Então Gilgamesh se levantou para contar o sonho que tivera à
sua mãe, Ninsun, uma das deusas de grande saber. "Mãe, tive um sonho
esta noite. Eu me sentia muito feliz, cercado de jovens heróis, e
caminhava pela noite sob as estrelas do firmamento. Um meteoro, feito
da mesma substância de Anu, caiu do céu. Tentei levantá-lo do chão,
mas era pesado demais. Toda a gente de Uruk veio vê-lo; o povo se
empurrava e se acotovelava ao seu redor, e os nobres se apinhavam
para beijar-lhe os pés; ele exercia sobre mim uma atração semelhante à
que exerce o amor de uma mulher. Eles me ajudaram; levantei seu
corpo com o auxílio de correias e trouxe-o à vossa presença, e vós
declarastes ser ele meu irmão."
Então Ninsun, que é sábia e bem-amada, disse a Gilgamesh: "Esta
estrela do céu que caiu como um meteoro, que tentaste levantar do
chão, mas achaste muito pesada, que tentaste remover, mas que dali
não arredava pé, e então trouxeste a mim; eu a criei para ti, para
estimular-te como que com um aguilhão, e te sentiste atraído como
que por uma mulher. Ele é um forte companheiro, alguém que ajuda o
amigo nas horas de necessidade. Ele é o mais forte entre todas as
criaturas selvagens; é feito da substância de Anu. Ele nasceu nos
campos e foi criado nas colinas agrestes. Ficarás feliz ao encontrá-lo;
vais amá-lo como a uma mulher, e ele jamais te abandonará. E isto o
que significa teu sonho."
Gilgamesh disse: "Mãe, tive um segundo sonho. Um machado
jazia no chão de Uruk das poderosas muralhas; seu formato era estranho
e as pessoas se amontoavam ao seu redor. Eu o vi e fiquei contente. Eu
me abaixei, sentindo-me profundamente atraído por ele; eu o amei
como a uma mulher e passei a levá-lo comigo, ao meu lado." Ninsun
respondeu: "Aquele machado que viste, que te atraiu tão
profundamente como o amor de uma mulher, aquele é o companheiro
que te envio, e ele chegará com força e pujança como um deus da
hoste celeste. Ele é o bravo companheiro, que salva o amigo que dele
precisa." Gilgamesh disse a sua mãe: "Um amigo, um conselheiro
chegou até mim vindo de Enlil; serei, pois, seu amigo e lhe darei
conselhos." Gilgamesh assim narrou seu sonho; e a rameira o repetiu
para Enkidu.
E ela disse então a Enkidu: "Olho para ti e vejo que agora és como
um deus. Por que anseias por voltar a correr pelos campos com as feras
do mato? Ergue-te do chão, a cama do pastor." Ele escutou com
atenção suas palavras. Era um bom conselho que lhe dava. A rameira
dividiu sua roupa em duas partes; com uma metade o vestiu, usando a
outra para si. Tomando Enkidu pela mão, como a uma criança, ela o
conduziu ao aprisco, para as tendas dos pastores, que se amontoaram
ao seu redor para vê-lo. Eles depositaram pão à sua frente, mas Enkidu
só estava habituado ao leite que sugava dos animais selvagens. Ele se
atrapalhou com as mãos e pasmou, sem saber o que fazer com o pão e
o vinho forte. A mulher então disse: "Enkidu, come o pão, é o suporte da
vida; bebe o vinho, é o costume da terra." Enkidu então comeu até ficar
satisfeito e bebeu do vinho forte, sete cálices. Ele ficou alegre, seu
coração exultou e seu rosto se cobriu de brilho. Enkidu escovou os pêlos
emaranhados de seu corpo e untou-se com óleo. Ele se transformara
num homem; mas, ao vestir as roupas humanas, ficou parecendo um
noivo. Ele se armou para caçar o leão, para que os pastores pudessem
repousar à noite. Ele caçou lobos e leões, e os pastores puderam dormir
em paz, pois Enkidu, aquele homem forte e sem rivais, era seu sentinela.
Ele se sentia feliz vivendo com os pastores, até que um dia,
levantando o olhar, viu que um homem se aproximava. Ele disse à
rameira: "Mulher, traze aqui aquele homem. Por que veio aqui? Quero
saber seu nome." Ela foi e chamou o homem, dizendo: "Senhor, onde
vais nesta fatigante jornada?" O homem respondeu, falando a Enkidu:
"Gilgamesh foi para o templo do casamento e não deixa que o povo lá
entre. Ele faz coisas estranhas em Uruk, a cidade das grandes ruas. Ao
rufar dos tambores, os homens e as mulheres começam a trabalhar.
Gilgamesh, o rei, está prestes a celebrar as núpcias com a Rainha do
Amor, e ele ainda insiste em estar primeiro com a noiva; primeiro o rei,
depois o marido, pois assim ordenaram os deuses desde a época de
seu nascimento, quando lhe foi cortado o cordão umbilical. Mas agora
os tambores rufam para a escolha da noiva, e a cidade geme de dor."
Ao ouvir estas palavras, Enkidu empalideceu. "Irei à cidade cujo povo
Gilgamesh domina e governa; vou desafiá-lo au-dazmente para um
combate e gritarei por Uruk: 'Vim para mudar a velha ordem, pois sou o
mais forte daqui.'"
Enkidu ia agora na frente, a largas passadas, e a mulher o seguia.
Ele entrou em Uruk, aquele grande mercado, e todo o povo se
amontoou ao seu redor. Naquela rua de Uruk das poderosas muralhas,
as pessoas se comprimiam e se acotovelavam e, falando dele, diziam:
"Ele é a imagem de Gilgamesh." "Ele é mais baixo." "Ele é mais robusto."
"Esta é a criatura que se criou tomando leite das feras selvagens. Sua
força é superior à de todos os outros." Os homens se regozijavam de
felicidade: "Agora Gilgamesh encontrou um rival à sua altura. Esta
grande criatura, este herói de divina beleza pode enfrentar até mesmo
Gilgamesh."
Em Uruk o leito nupcial fora preparado, um leito digno da deusa
do amor. A noiva ficou esperando seu prometido; à noite, porém,
Gilgamesh levantou-se e se dirigiu à casa. Enkidu foi então para a rua e
bloqueou sua passagem. O poderoso Gilgamesh se aproximou e
encontrou Enkidu no portão. Este esticou sua perna para impedir-lhe a
entrada. Os dois então se engalfinharam como touros. Destruíram a
porta da casa, e suas paredes tremeram; bufavam como dois touros
trancados juntos. Os batentes da porta ficaram em pedaços e as
paredes da casa tremeram. Gilgamesh curvou o joelho, fincou os pés
no chão e, virando-se, derrubou Enkidu. Sua fúria então se desvaneceu
imediatamente. Após a queda, Enkidu disse a Gilgamesh: "Não há
ninguém como tu no mundo. Ninsun, que tem a força de um boi
selvagem no estábulo, foi quem te deu à luz, e agora estás acima de
todos os homens. Enlil te deu a coroa, pois tua força ultrapassa a força
dos homens." Enkidu e Gilgamesh então se abraçaram, e assim foi
selada sua amizade.
2. A jornada na floresta
ENLIL da montanha, o pai dos deuses, havia decretado o destino
de Gilgamesh. Por isso Gilgamesh teve um sonho, e Enkidu disse: "O
significado do teu sonho é o seguinte: o pai dos deuses te deu um trono,
reinar é o teu destino; a vida eterna não é teu destino. Por isso, não
fiques triste, não te atormentes nem te deixes oprimir por causa disso. Ele
te deu o poder de atar e desatar, de ser as trevas e a luz da
humanidade. Ele te deu supremacia sem paralelo sobre o povo, te
garante a vitória nas batalhas de onde não escapam fugitivos; o
sucesso é teu nas incursões militares e nos implacáveis assaltos por ti
empreendidos. Mas não abuses deste poder; sê justo com teus servos no
palácio; faze justiça perante Shamash."
Os olhos de Enkidu encheram-se de lágrimas e seu coração foi
tomado de angústia. Ele suspirava cheio de tristeza. Gilgamesh fitou-o
nos olhos e perguntou: "Amigo, por que suspiras tão tristemente?" Enkidu
abriu a boca e respondeu: "Sinto-me fraco, meus braços perderam sua
força, o grito de dor está preso em minha garganta e o ócio me
oprime." Foi então que o grande Gilgamesh começou a pensar na Terra
dos Vivos; sobre a Terra dos Cedros refletiu o senhor de Uruk. Ele disse a
seu servo Enkidu: "Sobre as lápides ainda não deixei impresso o meu
nome, como decretou o destino; irei então à terra onde são abatidos os
cedros. No lugar onde estão inscritos os nomes de homens ilustres,
deixarei gravado o meu nome; e onde nome de homem algum foi
jamais inscrito, mandarei erigir um monumento aos deuses. Por causa do
mal que existe sobre a terra, nós iremos à floresta destruir esse mal; pois
é lá que mora o feroz gigante Humbaba, cujo nome é 'Enormidade'."
Mas Enkidu suspirou tristemente e disse: "Descobri essa floresta quando
corria no mato com as feras selvagens; ela se estende por dez mil
léguas em todos os sentidos. Enlil designou Humbaba para tomar conta
dela e o armou com sete horrores; Humbaba é uma criatura hedionda
para todos os mortais. Seu rugido é como uma terrível borrasca, seu
hálito é como o fogo, suas mandíbulas, a própria morte. Ele guarda tão
bem os cedros que consegue ouvir um novilho se mexer na selva a
sessenta léguas de distância. Que espécie de homem iria de sua própria
vontade penetrar nesta terra e explorar suas profundezas? Eu te digo, a
fraqueza toma conta de todo aquele que dela se aproxima: ninguém
luta com Humbaba em pé de igualdade; ele é um grande guerreiro, um
aríete. O sentinela da floresta jamais dorme, Gilgamesh."
Gilgamesh replicou: "E que homem pode chegar ao céu?
Somente os deuses vivem eternamente na companhia do glorioso
Shamash; nós, homens, temos nossos dias contados. Nossos trabalhos e
empreendimentos são como um sopro de vento. Como, então, já estás
com medo? Embora seja teu senhor, irei na frente e poderás gritar com
segurança: 'Avante, não há nada a temer!' Se eu cair, deixarei então
um nome que ficará para a posteridade; os homens dirão a meu
respeito: 'Gilgamesh caiu lutando com o feroz Humbaba.' Muito tempo
depois do nascimento de meu herdeiro, eles estarão falando disso e se
lembrando do meu feito." Enkidu tornou a falar com Gilgamesh: "Oh,
meu senhor, se algum dia decidires entrar naquela terra, procura
primeiro o herói Shamash; fala com o Deus-Sol, pois é dele aquela terra.
A terra onde o cedro é abatido pertence a Shamash."
Gilgamesh tomou em seus braços um cordeiro branco, sem
qualquer mácula, e um outro castanho; ele os segurou contra o peito e
os levou à presença do sol. Carregando na mão seu cetro de prata,
Gilgamesh disse ao glorioso Shamash: "Vou para aquela terra, oh,
Shamash, para lá eu vou; minhas mãos suplicam, protejei minha alma e
trazei-me de volta ao cais de Uruk. Eu imploro vossa proteção; permiti
que os augúrios sejam propícios." Shamash, o glorioso, respondeu:
"Gilgamesh, és forte, mas que é para ti a Terra dos Vivos?"
"Oh, Shamash, ouvi-me; ouvi-me, Shamash; ouvi o que tenho a
dizer. Os homens aqui da cidade morrem com o coração oprimido, eles
morrem com o desespero em seus corações. Tenho olhado por cima do
muro e visto seus corpos flutuando no rio, e este será também o meu fim.
Estou certo disso, pois por mais alto que seja um homem, ele jamais
atingirá os céus, e o maior entre todos jamais conseguirá abarcar a
terra. Por isso quero entrar naquela terra: por não ter ainda inscrito meu
nome sobre as lápides, como decretou meu destino, irei à terra onde
são abatidos os cedros. No lugar onde estão inscritos os nomes de
varões ilustres, deixarei gravado o meu nome; e onde nome de homem
algum foi jamais inscrito, mandarei erigir um monumento aos deuses."
Lágrimas escorreram por seu rosto, e ele disse: "Ai de mim! É longa a
jornada até a Terra de Humbaba. Se esta iniciativa está fadada ao
fracasso, por que encheste-me, oh, Shamash, de um sôfrego desejo de
empreendê-la? Como poderei ter sucesso neste empreendimento sem
vossa ajuda? Se eu morrer naquela terra, morrerei sem rancor; mas, se
retornar, gloriosos serão os presentes e louvores que dedicarei a
Shamash."
Shamash aceitou então o sacrifício de suas lágrimas. Tal como o
homem piedoso, compadeceu-se de Gilgamesh. Escolheu aliados fortes
para ajudá-lo, todos filhos de uma mesma mãe, e os posicionou nas
cavernas da montanha. Recrutou os ventos poderosos: o vento norte, o
furacão, o temporal e o vento gélido, a tempestade e o vento cáustico.
Como víboras, como dragões, como um fogo devastador, como uma
serpente que gela o coração, como um implacável dilúvio, como o
grande raio; assim eram eles, e Gilgamesh exultou.
Ele se dirigiu à forja e disse: "Darei ordens aos armeiros; eles
forjarão nossas armas enquanto nós os observamos." Deu então
instruções aos armeiros e os artífices sentaram-se em conferência. Eles
foram ao arvoredo que ficava na campina e cortaram a madeira do
salgueiro e do buxo; e forjaram-lhes machados de cento e oitenta libras,
e espadas majestosas com lâminas de cento e vinte libras, com punhos
e botões de trinta. Forjaram para Gilgamesh o machado "Força dos
Heróis" e o arco de Anshan. Gilgamesh e Enkidu estavam armados, e o
peso das armas que carregavam era de seiscentas libras.
O povo e os conselheiros se reuniram nas ruas e no mercado de
Uruk. Atravessaram o portão dos sete ferrolhos e Gilgamesh lhes falou no
mercado: "Eu, Gilgamesh, irei encontrar essa criatura de quem tanto se
fala, cuja fama se espalhou pelo mundo. Vou derrotá-lo na floresta dos
cedros e mostrar a força dos filhos de Uruk; o mundo inteiro saberá disso.
Eu me comprometo a levar a cabo este empreendimento: subir a
montanha, abater o cedro e deixar para trás um nome ilustre e
duradouro." Os conselheiros de Uruk e o povo responderam: "Gilgamesh,
sois jovem; vossa coragem faz com que ambicioneis demais;
certamente não sabeis o que para vós significa esta empresa.
Soubemos que Humbaba não é igual aos mortais; tais são suas armas
que ninguém pode vencê-lo. A floresta se estende por dez mil léguas
em todos os sentidos; quem iria de sua própria vontade explorar suas
profundezas? Quanto a Humbaba, seu rugido é como uma terrível
borrasca, seu hálito é como o fogo, suas mandíbulas a própria morte.
Por que ansiais, Gilgamesh, por tal empreendimento? Ninguém luta com
Humba-ba em pé de igualdade; ele é um aríete."
Ao ouvir estas palavras dos conselheiros, Gilgamesh olhou para
seu amigo e pôs-se a rir. "Como responder a isso? Devo dizer-lhes que
tenho medo de Humbaba e por isso ficarei sentado em casa pelo resto
de meus dias?" Gilgamesh então tornou a abrir a boca e disse para
Enkidu: "Amigo, vamos para o Grande Palácio, para Egalmah, e
postemos-nos diante de Ninsun, a rainha. Ninsun tem profunda
sabedoria; ela nos aconselhará quanto ao caminho que devemos
tomar." Dando-se as mãos, eles seguiram a Egalmah e se dirigiram à
grande rainha Ninsun. Gilgamesh se aproximou do palácio, entrou e
falou a Ninsun: "Ninsun, por favor, escutai-me; tenho de empreender
uma longa jornada à Terra de Humbaba; tenho de viajar por uma
estrada desconhecida e me bater numa estranha batalha. Do dia em
que eu partir até o dia da minha volta, até ter chegado à floresta de
cedro e destruído o mal que Shamash abomina, rezai a Shamash por
mim."
Ninsun foi para seu quarto, pôs um vestido que ficava bem em
seu corpo, enfeitou-se com jóias para embelezar os seios e colocou
uma tiara na cabeça; sua saia varria o chão. Ela dirigiu-se então ao
altar do Sol, postando-se em cima do telhado do palácio; ela acendeu
incenso e elevou seus braços a Shamash, enquanto a fumaça subia aos
céus: "Oh, Shamash, por que dotastes Gilgamesh, meu filho, de um
coração tão inquieto; por quê? Vós o incitastes, e ele agora está prestes
a partir numa longa jornada para a Terra de Humbaba; ele vai viajar por
uma estrada desconhecida e se bater numa estranha batalha. Do dia
em que ele partir até o dia de sua volta, até que tenha chegado à
floresta de cedro, morto Humbaba e destruído o mal que vós, Shamash,
abominais, não vos esqueçais dele; deixai que vossa amada esposa,
Aya, a aurora, vos lembre sempre disso, e ao final do dia entregai sua
guarda à sentinela da noite, para que mal algum lhe advenha." Ninsun,
a mãe de Gilgamesh, extinguiu então o incenso e chamou Enkidu com
a seguinte exortação: "Poderoso Enkidu, não és filho do meu corpo, mas
recebo-te como filho adotivo; és meu outro filho, como os bebês
abandonados no templo. Serve a Gilgamesh como estas crianças
servem ao templo e à sacerdotisa que os criou. Na presença de minhas
servas, de meus sacerdotes e hierofantes, eu o declaro." Ela colocou
então em torno de seu pescoço o amuleto do juramento e disse-lhe: "Eu
te confio meu filho; traze-o de volta para mim em segurança."
Trouxeram-lhes então as armas. Depositaram em suas mãos as grandes
espadas com suas bainhas de ouro, o arco e a aljava. Gilgamesh tomou
o machado em suas mãos, pôs o arco de Anshan e a aljava sobre o
ombro e afivelou a espada a seu cinto; estavam armados e prontos
para partir. O povo havia chegado e se apinhava ao seu redor
perguntando: "Quando retornareis à cidade?" Os conselheiros
abençoaram Gilgamesh e o advertiram: "Não confieis demais em vossa
própria força, tende cuidado e poupai vossos golpes no começo da
luta. O que for à frente deve proteger seu companheiro; o bom guia
que conhece o caminho protege seu amigo. Deixai que Enkidu vá na
frente; ele conhece o caminho que leva à floresta, já viu Humbaba e é
experiente na batalha. Deixai que avance primeiro pelos desfiladeiros,
que fique alerta e que cuide de si mesmo. Deixai que Enkidu proteja seu
amigo e que tome conta de seu companheiro, conduzindo-o em
segurança através das armadilhas do percurso. Nós, conselheiros de
Uruk, te confiamos nosso rei, oh, Enkidu; traze-o de volta em segurança
para nós." E novamente tornaram a Gilgamesh, dizendo: "Que Shamash
vos conceda o desejo de vosso coração, que ele permita que vejais
com vossos olhos o sucesso do empreendimento proposto por vossos
lábios; que ele vos abra uma trilha na estrada bloqueada; que ele crie
um caminho para vossos pés. Que ele abra as montanhas para a vossa
passagem, que a noite vos traga as bênçãos da noite, e que
Lugulbanda, o deus que vos protege, esteja a vosso lado na luta pela
vitória. Que saiais vitorioso da batalha, como se houvésseis lutado com
uma criança. Lavai vossos pés no rio de Humbaba, ao qual vos dirigis;
cavai um poço à noite e tende sempre água pura e límpida em vosso
odre. Oferecei água fria a Shamash e não vos esqueçais de
Lugulbanda."
Enkidu então abriu a boca e disse: "Avante, não há nada a temer.
Segue-me, pois conheço o lugar onde vive Humbaba e as trilhas por
onde ele passa. Deixa que os conselheiros retornem. Não há o que
temer." Ao ouvirem isso, os conselheiros se despediram de Gilgamesh.
"Ide, Gilgamesh, que vosso deus protetor vos ajude e vos traga de volta
com segurança ao cais de Uruk."
Depois de vinte léguas de viagem, eles quebraram seu jejum;
depois de outras trinta, pararam para passar a noite. Caminharam
cinqüenta léguas num dia; em três dias, haviam percorrido o
equivalente a uma jornada de um mês e duas semanas. Eles
atravessaram sete montanhas antes de chegar ao portão da floresta.
Enkidu então gritou para Gilgamesh: "Não te embrenhes na floresta; ao
abrir o portão, minha mão perdeu sua força." Gilgamesh respondeu:
“Caro amigo, não fales como um covarde”. Sobrepujamos tantos
perigos e viajamos tanto para acabar voltando? Tu, que carregas a
experiência de tantas batalhas e guerras, fica perto de mim e não terás
medo da morte; fica do meu lado e tua fraqueza passará, os tremores
abandonarão tua mão. Preferirias, amigo, ficar para trás? Não,
desceremos juntos ao coração da floresta. Deixa as batalhas que estão
por vir despertarem tua coragem; esquece a morte e segue-me, um
homem resoluto mas prudente. Quando dois homens estão juntos, cada
um se protege e escuda seu companheiro, e, se eles caem, deixam
para trás um nome ilustre e duradouro.
Juntos eles se dirigiram à floresta e chegaram à montanha verde.
Ali pararam, estupefatos, fitando imóveis a floresta. Viram a altura do
cedro, examinaram o caminho que penetrava na floresta e a trilha por
onde Humbaba costumava passar. O caminho era largo e fácil de
percorrer. Eles contemplaram a montanha dos cedros, a morada dos
deuses e o trono de Ishtar. O enorme cedro se elevava em frente à
montanha; sua sombra era linda e cheia de conforto. A montanha e a
clareira eram cobertas pelo verde do matagal.
Ali Gilgamesh cavou um poço antes do pôr-do-sol. Ele subiu a
montanha, deitou farinha fina ao chão e disse: "Oh, montanha, morada
dos deuses, trazei-me um sonho auspicioso." Os dois então deram-se as
mãos e se deitaram para dormir, e o sono que flui da noite os envolveu
docemente. Gilgamesh sonhou, e à meia-noite o sono o deixou.
Gilgamesh contou seu sonho ao amigo. "Enkidu, o que foi que me
acordou se não foste tu? Amigo, tive um sonho. Levanta e olha o
despenhadeiro da montanha. O sono enviado pelos deuses foi
interrompido. Ah, meu amigo, que sonho tive eu! Terror e confusão; eu
havia agarrado um touro selvagem no meio da floresta. Ele urrava e
batia com a pata no chão, levantando uma poeira que escureceu
todo o céu. Meu braço foi imobilizado e minha língua mordida. Caí de
joelhos. Alguém então me refrescou com água de seu odre."
Enkidu disse: "Caro amigo, o deus que procuramos nesta viagem
não é nenhum touro, embora tenha uma forma misteriosa. O touro
selvagem que viste é Shamash, o Protetor; quando estivermos em
perigo, ele nos tomará pela mão. Aquele que te deu água tirada de
seu odre é Lugulbanda, teu deus protetor, aquele que zela por teu bom
nome. Unidos a ele, nós dois juntos realizaremos um feito cuja fama
jamais será esquecida."
Gilgamesh disse: "Tive um outro sonho. Nós nos encontrávamos
num desfiladeiro profundo da montanha, e perto dela éramos como
minúsculas moscas de pântano. De repente a . montanha desmoronou;
ela me atingiu e me derrubou. Veio então uma luz de brilho intolerável,
e nela, alguém cuja beleza e graça eram superiores à beleza deste
mundo. Ele me puxou de baixo da montanha e deu-me água para
beber. Meu coração se sentiu confortado e ele tornou a colocar-me de
pé sobre o chão."
Enkidu, o filho das campinas, então disse: "Desçamos a montanha
e vamos conversar sobre isso." E disse a Gilgamesh, o jovem deus: "Teu
sonho é bom, teu sonho é excelente; a montanha que viste é
Humbaba. Agora sei com certeza que vamos pegá-lo, liquidá-lo e atirar
seu corpo lá de cima, como a montanha que caiu sobre a planície."
No dia seguinte, depois de percorrer vinte léguas, eles quebraram
seu jejum e, depois de mais trinta léguas, pararam para dormir.
Cavaram um poço antes do pôr-do-sol, e Gilgamesh subiu a montanha.
Ele deitou farinha fina ao chão e disse: "Oh, montanha, morada dos
deuses, mandai um sonho para Enkidu; fazei com que seja um sonho
auspicioso." A montanha moldou um sonho para Enkidu e ele lhe foi
enviado; era um sonho ominoso. Uma chuva fria passava por cima dele
e fazia com que fosse obrigado a se agachar, como a cevada da
montanha que se curva sob um temporal. Mas Gilgamesh ficou sentado
com o queixo sobre os joelhos até que o sono, que flui para toda a
humanidade, se apoderou dele. Então, à meia-noite, o sono deixou-o;
ele se levantou e disse para o amigo: "Tu me chamaste? Por que
acordei? Tu me tocaste? Por que me sinto aterrorizado? Será que algum
deus não passou por nós, pois meus membros estão paralisados pelo
medo? Amigo, tive um terceiro sonho, e este sonho foi absolutamente
terrível. Os céus troavam e a terra rugia de volta; a luz do dia apagou-se
e a escuridão se instalou; os raios caíam, o fogo ardia com um brilho
intenso, as nuvens baixaram do céu e derramaram sobre a terra uma
chuva mortal. Então o brilho se extinguiu, o fogo se apagou, e tudo ao
nosso redor havia se transformado em cinzas. Desçamos a montanha e
vamos conversar sobre isto, e pensar sobre o que devemos fazer."
Depois de descerem a montanha, Gilgamesh tomou o machado
em sua mão e abateu o cedro. Quando, a distância, Humbaba ouviu o
barulho, ficou furioso e gritou: "Quem violou minha floresta e abateu o
meu cedro?" Mas o glorioso Shamash gritou para eles do céu, "Avante,
não temais!" Mas uma fraqueza se apoderara de Gilgamesh; ele fora
repentinamente tomado por um sono profundo. Ele se estendeu no
chão sem dizer uma só palavra, como num sonho. Enkidu tocou-o, mas
ele não se levantou; Enkidu lhe falou, mas ele não respondeu. "Oh,
Gilgamesh, Senhor da planície de Kullab, o mundo vai escurecendo, as
sombras se espalham sobre sua superfície; eis os últimos e trêmulos raios
do crepúsculo. Shamash partiu, sua cabeça incandescente repousa no
colo de sua mãe Ningal. Oh, Gilgamesh, por quanto tempo ficarás
assim, dormindo? Não permitas jamais que tua mãe, aquela que te deu
à luz, seja forçada a velar-te na praça da cidade."
Gilgamesh por fim escutou-o; ele vestiu seu peitoral, "A Voz dos
Heróis", que pesava trinta siclos; ele o colocou em seu corpo como se
fosse o mais leve dos trajes. Gilgamesh estava totalmente coberto. Sua
postura era semelhante à do touro quando calca o chão; seus dentes
se cerraram. "Pela vida de minha mãe Ninsun, que me deu à luz, e pela
vida de meu pai, o divino Lugulbanda, que eu viva para encher minha
mãe de pasmo, como fazia quando ela me embalava em seu colo." Ele
tornou a repetir para Enkidu: "Pela vida de Ninsun minha mãe, que me
deu à luz, e pela vida de meu pai, o divino Lugulbanda, até que
tenhamos lutado com este homem, se homem ele é, ou este deus, se
deus ele é, a via que tomei para chegar à Terra dos Vivos não me
levará de volta a Uruk."
Então Enkidu, o fiel companheiro, implorou em resposta: "Oh, meu
senhor, tu não conheces este monstro e por isso não tens medo. Eu o
conheço e estou aterrorizado. Seus dentes são como as presas do
dragão, seu semblante é como o do leão, a fúria de seu ataque se
assemelha à da torrente do dilúvio; com seu olhar ele esmaga as
árvores da floresta e os juncos dos pântanos. Oh, meu senhor, podes
prosseguir em tua incursão por este território se quiseres, mas eu
retornarei à cidade. Contarei teus feitos gloriosos a tua mãe até que ela
grite de júbilo: falarei então da morte que se seguiu até que ela chore
de amargura." Mas Gilgamesh disse: "Ainda não estou preparado para
a imolação e para o sacrifício, a barca dos mortos não descerá o rio
comigo, nem tampouco será necessário que se prepare para mim a
mortalha de três pregas. Meu povo também será poupado da tristeza; a
pira não será acesa em minha casa; minha morada não será
consumida pelo fogo. Dá-me tua ajuda hoje e te ajudarei amanhã: o
que poderá então dar errado com nós dois juntos? Todas as criaturas
nascidas da carne terão um dia que tomar um lugar na barca do
Oeste, e, quando ela afundar, quando a barca de Magilum afundar,
elas perecerão; mas nós continuaremos em frente e olharemos este
monstro de frente. Se teu coração está tomado de medo, joga fora
esse medo; se há terror nele, joga fora esse terror. Toma o machado em
tua mão e lança-te ao ataque. Aquele que abandona a luta não fica
em paz."
Humbaba irrompeu de sua sólida casa de cedro. Enkidu então
gritou: "Oh, Gilgamesh, lembra-te agora de tuas bravatas em Uruk.
Avante, ataca, filho de Uruk, não há o que temer." Ao ouvir estas
palavras, Gilgamesh recobrou sua coragem; ele respondeu: "Rápido,
cerca o sentinela; se ele passar por ali, não deixes que fuja para a
floresta, onde acabará desaparecendo. Ele vestiu apenas o primeiro de
seus sete esplendores e ainda não colocou os outros seis. Vamos
apanhá-lo antes que se arme." Gilgamesh resfolegou como um touro
enfurecido. O sentinela da floresta virou-se ameaçadora-mente, e
Gilgamesh gritou. Humbaba balançava e sacudia a cabeça,
ameaçando Gilgamesh. O olho do gigante fixara-se nele, o olho da
morte. Gilgamesh então invocou Shamash com os olhos cheios de
lágrimas: "Oh, glorioso Shamash, tomei o caminho que me ordenastes,
mas se não me mandardes socorro como poderei escapar?" O glorioso
Shamash escutou sua prece e convocou o grande vento, o vento norte,
o furacão, o temporal e o vento gélido, a tempestade e o vento
cáustico. Eles chegaram como dragões, como o fogo devastador,
como a serpente que gela o coração, como o implacável dilúvio,
como os grandes raios. Os oito ventos se lançaram contra Humbaba,
atingindo seus olhos; ele foi imobilizado, não conseguindo mover-se
para a frente ou para trás. Gilgamesh gritou: "Pela vida de Ninsun,
minha mãe, e do divino Lugulbanda, meu pai, nesta terra, na Terra dos
Vivos, descobri tua morada. Vim a esta terra com meus frágeis braços e
minhas pequenas armas para enfrentar-te, e agora entrarei em tua
casa."
Ele então abateu o primeiro cedro; eles cortaram seus galhos e os
depositaram ao pé da montanha. Ao primeiro golpe do machado
Humbaba explodiu de ira, mas eles foram em frente. Abateram sete
cedros, cortaram e amarraram seus galhos e os depositaram ao pé da
montanha; e por sete vezes Humbaba lançou sobre eles o brilho de sua
glória. Eles chegaram à caverna do gigante quando se extinguia o
sétimo clarão. Humbaba esmurrou sua coxa em sinal de desdém. O
gigante foi se aproximando como um touro nobre e selvagem que foi
amarrado na montanha, um guerreiro com os cotovelos presos e
atados por uma corda. As lágrimas corriam de seus olhos e a palidez lhe
cobria o rosto. "Gilgamesh, deixa-me falar. Jamais tive uma mãe, não,
nem um pai para me criar. Nasci da montanha, ela me criou, e Enlil fez
de mim o sentinela da floresta. Deixa-me ir, Gilgamesh, e serei teu servo;
tu serás meu senhor. Todas as árvores da montanha, que foram
cuidadas por mim, serão tuas. Eu as abaterei e te construirei um
palácio." Ele tomou Gilgamesh pela mão e o conduziu à sua casa, e isso
fez com que o coração do herói se enchesse de piedade. Ele invocou a
vida celestial, a vida terrena, o próprio mundo inferior: "Oh, Enkidu, não
deveria o passarinho apanhado na armadilha retornar ao seu ninho, ou
o prisioneiro para os braços de sua mãe?" Enkidu respondeu: “O mais
forte dos homens cairá ante o destino se não tiver discernimento”.
Namtar, o fado maligno, que não faz distinção entre os homens,
devorá-lo-á. Se o pássaro preso na armadilha retornar ao seu ninho, se o
prisioneiro voltar para os braços de sua mãe, então tu, meu amigo,
jamais retornarás à cidade onde te espera a mãe que te gerou. Ele te
bloqueará o caminho da montanha e tornará impossível tua passagem.
Humbaba disse: "Enkidu, isso que disseste é uma coisa má; tu, um
mercenário, que dependes do trabalho para obter teu pão! Por inveja e
por medo de um rival disseste essas maldades." Enkidu disse: "Não ouças
o que ele diz, Gilgamesh: Humbaba tem de morrer. Mata Humbaba
primeiro e seus servos depois." Mas Gilgamesh disse: "Se tocarmos nele, o
brilho e o esplendor da luz serão perturbados; ela perderá seu encanto
e sua majestade; seus raios se extinguirão." Enkidu disse a Gilgamesh:
"De modo algum, meu amigo. Primeiro apanhas o pássaro, e para onde
então correrão os passarinhos? Podemos depois procurar o encanto e a
majestade, enquanto os passarinhos correm atarantados pela grama."
Gilgamesh ouviu seu companheiro. Ele tomou o machado em sua
mão, desembainhou a espada e acertou Humbaba com uma
estocada no pescoço. Seu companheiro Enkidu golpeou-o uma
segunda vez. Na terceira investida Humbaba tombou. Seguiu-se então
uma grande confusão, pois este a quem eles haviam morto era o
sentinela da floresta. Por duas léguas os cedros estremeceram quando
Enkidu abateu o vigia da floresta, aquele cuja voz fazia o montes
Hermon e Líbano tremerem. As montanhas e todas as colinas se
achavam agora agitadas e comovidas, pois o guarda da floresta fora
morto. Eles atacaram os cedros; os sete esplendores de Humbaba se
extinguiram. Eles então prosseguiram floresta adentro carregando a
espada de oito talentos. Eles acharam as moradas sagradas dos
Anunnaki e, enquanto Gilgamesh abatia a primeira árvore da floresta,
Enkidu ia limpando suas raízes até as margens do Eufrates. Eles
expuseram aos deuses, a Enlil, o corpo de Humbaba; eles beijaram o
chão, deixaram cair a mortalha e apresentaram ao deus a cabeça do
gigante. Ao ver a cabeça de Humbaba, Enlil gritou: "Por que fizestes
isso? De agora em diante que o fogo castigue vossos rostos, que ele
coma o pão que corneis, que beba a água que bebeis." Enlil então
tomou de volta o brilho e os sete esplendores que haviam pertencido a
Humbaba: ele deu o primeiro deles ao rio, e os outros ao leão, à pedra
de execração, à montanha e à temida filha da Rainha do Inferno.
Oh, Gilgamesh, rei e conquistador do brilho terrível, touro
selvagem que pilha a montanha, que atravessa o mar, louvado seja; e
dos corajosos a maior glória é a de Enki!
3. Ishtar e Gilgamesh, e a morte de Enkidu
Gilgamesh lavou seus longos cabelos e limpou suas armas; jogou
os cabelos para trás dos ombros, tirou as roupas manchadas que vestia
e trocou-as por novas. Ele colocou seus mantos reais e os ajustou ao
corpo. Ao vestir a coroa, a gloriosa Ishtar elevou seus olhos e divisou a
beleza de Gilgamesh. Ela disse: "Vem comigo, Gilgamesh, e sê meu
consorte; infunde-me a semente de teu corpo; deixa-me ser tua mulher
e serás meu marido. Arrearei para ti uma carruagem com ouro e lápislazúli;
as rodas serão de ouro, as trompas de cobre; em vez de mulas,
terás para puxá-la os poderosos demônios da tempestade. Ao entrares
em nossa casa, envolvida na fragrância do cedro, terás a soleira e o
trono a beijar-te os pés. Reis, tiranos e príncipes se curvarão à tua
presença; eles te trarão tributos das montanhas e das planícies. Tuas
ovelhas darão à luz gêmeos e tuas cabras trigêmeos; teus burros de
carga serão mais rápidos do que as mulas; nada se igualará a teu
gado, e os cavalos de tua carruagem serão conhecidos em terras
distantes por sua velocidade."
Gilgamesh abriu a boca e respondeu à gloriosa Ishtar: “Se vos
tomar como esposa, que presentes poderei oferecer em troca”? Que
vestes e perfumes poderia te dar? De bom grado dar-vos-ia pão e todo
tipo de comida à altura de um deus. Dar-vos-ia de beber um vinho
digno de uma rainha. Eu abarrotaria vosso celeiro de cevada; mas fazer
de vós minha esposa, isso não. O que seria de mim? Fostes para vossos
amantes como um braseiro que arde sem chama no frio, como uma
porta que não protege do vento cortante ou da tempestade, uma
fortaleza que esmaga sua guarnição, uma jarra que enegrece o ombro
de quem a carrega, um odre que escoria e esfola a pele de seu
portador, uma rocha que cai do parapeito, um aríete vindo do inimigo,
uma sandália que faz tropeçar aquele que a veste. Qual de vossos
amantes chegastes alguma vez a amar para sempre? De qual de
vossos pastores não vos cansastes? Escutai-me enquanto conto a
história de vossos amantes. Havia Tammuz, o amor de vossa juventude;
decretastes por ele o choro e a lamentação, ano após ano. Amastes o
multicolorido gaio, mas ainda sim desferistes um golpe contra sua asa,
quebrando-a; agora, pousado em alguma árvore do bosque, ele chora
'cápi, cápi, minha asa, minha asa'. Amastes o leão de tremenda força;
preparastes para ele sete armadilhas, e mais sete. Amastes o garanhão
que era magnífico na batalha, e para ele decretastes o chicote, a
espora e a correia; ordenastes que galopasse sete léguas todos os dias
e que lhe dessem água suja para beber; e para sua mãe, Silili,
impusestes as lamentações. Amastes o pastor do rebanho; dia após dia
ele vos preparava um bolo de aveia; e sacrificava cordeiros em vossa
homenagem. Vós o golpeastes e o transformastes num lobo; agora seus
próprios filhos o afujentam, seus próprios cães de caça o acossam,
lacerando-lhe os flancos. E não amastes também Ishullanu, o jardineiro
do bosque de palmeiras de vosso pai? Ele vos trazia incontáveis cestas
repletas de tâmaras; todos os dias ele cobria vossa mesa. Então olhastes
para ele e dissestes: 'Caro Ishullanu, vem comigo, vamos desfrutar de
tua virilidade, aproxima-te e toma-me em teus braços, sou tua.' Ishullanu
respondeu: 'O que estais me pedindo? Minha mãe cozinhou e eu comi;
por que deveria recorrer a alguém como vós para obter comida
contaminada e pútrida? Pois desde quando um biombo de treliça é
proteção suficiente contra a geada?' Ao ouvir sua resposta lançastes
contra ele um feitiço. Ele se transformou numa toupeira cega que
habita as profundezas da terra, alguém cujos desejos estão sempre
além de seu alcance. E, se nos uníssemos, será que eu não receberia o
mesmo tratamento dispensado a todos esses que um dia amastes?
Ao ouvir esta resposta, Ishtar foi tomada de uma implacável
cólera. Ela subiu aos céus e chorou convulsivamente diante de seu pai,
Anu, e sua mãe, Anion. E disse: "Pai, Gilgamesh cobriu-me de insultos; ele
expôs toda a minha abominável conduta; denunciou minhas infâmias e
torpezas." Anu abriu a boca e disse: "És um pai de deuses? Não
discutiste com Gilgamesh, o rei, e por isso ele denunciou tua
abominável conduta, tuas infâmias e torpezas?"
Ishtar abriu a boca e tornou a falar: "Pai, dai-me o Touro do Céu
para destruir Gilgamesh. Enchei, eu vos peço, Gilgamesh de arrogância
para sua própria destruição; mas, se vos recusardes a me dar o Touro do
Céu, destruirei os portões do inferno e despedaçarei seus ferrolhos;
haverá confusão entre os seres que estão nas camadas superiores e os
que estão nas profundezas da terra. Trarei os mortos para cima, para
que se alimentem como os vivos, e a hoste dos mortos será mais
numerosa que a dos vivos." Anu disse à poderosa Ishtar: "Se eu fizer o
que tu me pedes, haverá sete anos de seca por toda Uruk; o trigo só
terá palha e nada de semente. Guardaste uma quantidade suficiente
de grãos para as pessoas e capim para o gado?" Ishtar replicou:
"Guardei grãos para as pessoas e capim para o gado; há uma
quantidade suficiente de grãos e capim para os sete anos de trigo sem
semente."
Ao ouvir a resposta de Ishtar, Anu entregou-lhe o Touro do Céu
para que fosse conduzido pelo cabresto até Uruk. Quando eles
chegaram aos portões da cidade, o Touro dirigiu-se ao rio. Ele bufou
uma vez e a terra abriu-se em fendas, engolindo a vida de cem
homens. Ele bufou uma segunda vez e mais fendas se abriram, levando
a vida de duzentos homens.
Na terceira vez novas fendas se abriram, lançando Enkidu para a
frente; mas ele imediatamente recuperou o equilíbrio, se esquivou e
lançou-se sobre o touro agarrando-o pelos chifres. O Touro do Céu
espumava em seu rosto e o escoriava com a parte mais grossa de sua
cauda. Enkidu gritou para Gilgamesh: "Amigo, nós alardeamos que
deixaríamos uma fama duradoura atrás de nossos nomes. Agora enfia
tua espada entre a nuca e os chifres do touro." Gilgamesh foi então
atrás da fera, agarrou o talo de sua cauda, enfiou a espada entre sua
nuca e seu chifre e a matou. Depois de matarem o Touro do Céu, eles
arrancaram seu coração e o ofereceram a Shamash. Os dois irmãos
então descansaram.
Mas Ishtar levantou-se e escalou a grande muralha de Uruk; ela
pulou para a torre e proferiu uma maldição: "Ai de Gilgamesh, pois
zombou de mim ao matar o Touro do Céu." Ao ouvir essas palavras,
Enkidu arrancou a coxa direita do touro e atirou-lhe ao rosto, dizendo:
"Se pudesse colocar minhas mão em ti, é isso que te faria, e açoitaria
com as entranhas o teu corpo." Ishtar então conclamou sua gente, as
prostitutas do templo, as jovens que cantavam e dançavam, as
cortesãs. Em torno da coxa do Touro do Céu, organizou um velório de
choro e lamentação.
Mas Gilgamesh reuniu todos os ferreiros e alfagemes. Eles ficaram
impressionados com a imensidão dos chifres, que eram revestidos de
uma camada de lápis-lazúli de duas polegadas de espessura. Cada um
deles pesava quinze quilos, e em seu interior cabia o equivalente a seis
medidas de óleo, que Gilgamesh ofereceu ao seu deus protetor,
Lugulbanda. Mas ele levou os chifres para o palácio e os pendurou na
parede. Eles então lavaram suas mãos no Eufrates, abraçaram-se e
foram embora. Atravessaram as ruas de Uruk, onde os heróis haviam se
reunido para vê-los, e Gilgamesh virou-se para as jovens que cantavam
e gritou: "Quem é o mais glorioso dos heróis, quem é o mais eminente
entre os homens?" "Gilgamesh é o mais glorioso dos heróis, Gilgamesh é
o mais eminente entre os homens." Houve então um banquete, e
festejos, e o palácio encheu-se de alegria, até os heróis se deitarem,
dizendo: "Descansaremos agora até o amanhecer."
Quando a manhã chegou, Enkidu levantou-se e gritou para
Gilgamesh: "Oh, meu irmão, que sonho tive esta noite. Anu, Enlil, Ea e o
celestial Shamash se reuniram em conselho, e Anu disse a Enlil: 'Por
terem matado o Touro do Céu e por terem morto Humbaba, que
tomava conta da Montanha de Cedro, um dos dois tem de morrer.' O
glorioso Shamash respondeu então ao herói Enlil: 'Foi sob tuas ordens
que eles mataram Humbaba e o Touro do Céu, será que Enkidu tem de
morrer apesar de ser inocente?' Enlil virou-se bruscamente para o
glorioso Shamash e disse, em fúria: 'Ousas dizer uma coisa dessas, tu que
estavas sempre a acompanhá-los como se fosses um deles!' '
Enkidu jazia estendido diante do amigo. Suas lágrimas vertiam
copiosamente, e ele disse a Gilgamesh: "Oh, meu irmão, és tão querido
por mim, e eles no entanto vão tirar-me de ti." Ele tornou a falar: "Devo
sentar-me à entrada da casa dos mortos e jamais tornar a ver com
meus olhos o meu querido irmão."
Solitário e enfermo em seu leito, Enkidu amaldiçoava o portão
como se ele fosse de carne viva: "Tu, madeira do portão, inerte,
insensível e apática; viajei vinte léguas procurando por ti, até achar o
gigantesco cedro. Não há madeira igual em nossa terra. Setenta e dois
côvados de altura e vinte quatro de largura; eixo, virola e batente
perfeitos. Foste feito pelo mestre dos artesãos de Nippur; mas, ai, se eu
soubesse o que aconteceria! Se soubesse que serias o único bem
resultante desta aventura, teria levado o machado ao ar e te feito em
pedaços, e em teu lugar construiria aqui um portão de vime. Ai, se pelo
menos tivesses chegado aqui por obra de algum futuro rei, ou se um
deus te tivesse criado! Que ele apague o meu nome e o substitua pelo
seu; que a maldição recaia sobre sua cabeça em vez de tombar sobre
a de Enkidu."
Ao primeiro brilho da alvorada, Enkidu levantou a cabeça e
chorou diante do Deus-Sol; suas lágrimas corram por seu rosto ao brilho
da luz solar. "Deus-Sol, eu vos imploro, a respeito daquele caçador
infame, aquele caçador vil, por culpa de quem vim a receber menos
que meu companheiro; fazei com que capture menos presas, tornai a
caça mais escassa, fazei com que ele se enfraqueça, que receba a
menor parte nas divisões entre os caçadores, que suas vítimas fujam de
suas armadilhas."
Depois de imprecar contra o caçador até desabafar seu
coração, ele se voltou para a rameira. Crescera nele uma necessidade
de também amaldiçoá-la. "Quanto a ti, mulher, lanço-te uma grande
maldição! Prometo-te um destino para toda a eternidade. Minha praga
se abaterá sobre ti imediata e repentinamente. Ficarás sem teto para o
teu comércio, pois não manterás casa com outras mulheres na taberna,
mas terás de realizar teu negócio em lugares fétidos e empestados pelo
vômito do bêbado. Teu preço será barato; teus pequenos furtos serão
lançados com desdém ao chão de tua choupana; tu te sentarás na
encruzilhada poeirenta do quarteirão dos oleiros; farás tua cama à noite
sobre um monte de estrume, e durante o dia tomaras teu lugar sob a
sombra da muralha. Sarças e espinhos rasgarão teus pés; o bêbado e o
sóbrio te golpearão o rosto e sentirás dores na boca. Que sejas
despojada de tuas tintas purpúreas, pois também eu na selva com
minha mulher tinha todos os tesouros que desejava."
Ao ouvir as palavras de Enkidu, Shamash gritou-lhe do céu:
"Enkidu, por que amaldiçoas a mulher, a concubina que te ensinou a
comer pão digno dos deuses e a beber o vinho dos reis? Ela, que
colocou sobre ti um magnífico traje, não foi ela quem te deu o glorioso
Gilgamesh por companheiro, e Gilgamesh, teu próprio irmão, não fez
ele com que te deitasses num leito real e te reclinasses sobre um diva à
esquerda de seu trono? Ele fez com que os príncipes da terra beijassem
teus pés, e hoje todo o povo de Uruk chora e se lamenta por ti. Quando
morreres, ele deixará seus cabelos crescerem por tua causa; ele vestirá
a pele de um leão e vagueará pelo deserto."
Ao ouvir as palavras do glorioso Shamash, seu coração colérico se
acalmou; ele retirou a maldição e disse: "Mulher, prometo-te um outro
destino. A boca que te amaldiçoou agora te abençoa! Serás adorada
por reis, príncipes e nobres. Embora a doze milhas de distância,
exercerás forte atração sobre um homem e o perturbarás. Ele te abrirá
as portas de seu tesouro e terás tudo o que desejares: lápis-lazúli, ouro e
cornalina, tirados da sua pilha de tesouros. Ganharás um anel para teu
dedo e um manto. Um sacerdote de conduzirá à presença dos deuses.
Por tua causa uma esposa, mãe de sete, foi abandonada."
Enquanto Enkidu dormia sozinho em sua enfermidade, com o
coração amargurado ele se virou para o amigo e desabafou: “Fui eu
quem abateu o cedro, quem limpou a floresta, quem matou Humbaba,
e agora olha o que me aconteceu”. Escuta, meu amigo, o sonho que
tive esta noite. Os céus troavam e a terra rugia de volta; entre os dois
estava eu, diante de um ser aterrador, o homem-pássaro de feições
sombrias. Ele havia me escolhido como presa. Seu rosto era como o de
um vampiro, seus pés como as patas de um leão, suas mãos como as
garras de uma águia. Ele se abateu sobre mim e suas presas agarraram
minha cabeça; ele me apertou com força e me senti sufocar; ele então
transformou meu corpo de tal maneira que meus braços viraram asas
cobertas de penas. Ele me olhou fixamente e levou-me para o palácio
de Irkalla, a Rainha das Trevas, à casa de onde ninguém que entra
jamais torna a sair, à estrada sem retorno.
"Ali fica a casa onde as pessoas sentam-se no escuro, onde o pó
é sua comida e o barro sua carne. Elas se vestem como os pássaros,
tendo as asas como traje; elas não vêem a luz e sentam-se na
escuridão. Eu entrei na casa do pó e vi os reis da terra, suas coroas
guardadas para sempre; vi tiranos e príncipes, todos aqueles que
outrora usavam coroas reais e governavam o mundo. Aqueles que no
passado haviam ocupado o lugar de deuses como Anu e Enlil agora
trabalhavam como servos, buscando carne assada na casa do pó e
carregando carne cozida e água fria tirada do odre. Na casa do pó em
que entrei estavam os altos sacerdotes e os acólitos, os sacerdotes do
êxtase e do encantamento; lá se encontravam os servidores do templo
e Etana, o rei de Kish, a quem outrora a águia carregou para o céu.
Também vi Samuqan, o deus do gado, e Ereshkigal, a Rainha do Mundo
Inferior; e, agachada em frente a ela, Belit-Sheri, escriba dos deuses e
guardiã do livro da morte. Ela estava lendo uma tábua que tinha em
suas mãos. Ela levantou a cabeça, me viu e falou: 'Quem trouxe este
aqui?' Eu então acordei e parecia um homem sangrado que erra
solitário por entre os juncos; alguém que foi agarrado pelo intendente e
cujo coração bate disparado, cheio de agonia e terror."
Gilgamesh havia se despido; ele escutou as palavras do amigo e
chorou intensamente. Ele abriu a boca e disse a Enkidu: "Quem na Uruk
das poderosas muralhas tem tamanha sabedoria? Coisas estranhas
foram ditas, por que teu coração fala assim tão estranhamente? Teu
sonho foi grandioso, mas terrível; devemos conservá-lo na memória
apesar de seus horrores, pois ele demonstra que a miséria acaba
abatendo-se sobre o homem saudável, que o fim da vida é doloroso." E
Gilgamesh lamentou: "Rezarei agora aos grandes deuses, pois meu
amigo teve um sonho ominoso."
O dia do sonho chegou ao fim, e Enkidu jazia enfermo. Passou um
dia inteiro no leito e seu sofrimento aumentou. Enkidu disse a Gilgamesh,
o amigo por quem ele abandonara sua vida no meio da natureza:
"Houve época em que lutei por ti, pela água da vida, e agora eu não
tenho nada." Enkidu passou um segundo dia no leito e Gilgamesh velou
por ele, mas a doença piorou. No terceiro dia, ele chamou Gilgamesh,
acordando-o. Enkidu estava fraco e seus olhos já não enxergavam mais
de tanto chorar. Dez dias se passaram e seu sofrimento aumentava;
onze, doze dias, e Enkidu continuava em seu leito de dor. Ele então
chamou Gilgamesh e disse: "Amigo, a grande deusa me amaldiçoou e
devo morrer na vergonha. Não morrerei como um homem que tomba
durante a batalha; eu temia ser derrubado na luta, mas feliz é aquele
que morre lutando, pois eu morrerei na vergonha." E Gilgamesh chorou
por Enkidu. Ao primeiro brilho da alvorada ele elevou sua voz e falou aos
conselheiros de Uruk:
"Ouvi-me, homens ilustres de Uruk,
Choro por Enkidu, meu amigo.
Com as lagrimas pungentes da mulher aflita
Choro por meu irmão.
Oh, Enkidu, meu companheiro,
Foste o machado que levava ao meu lado,
A força do meu braço, a espada em meu cinturão,
O escudo que me protegia,
Um glorioso manto, meu mais belo ornamento;
Um destino cruel roubou-o de mim.
O asno selvagem e a gazela
Que como pai e mãe te criaram,
Todas as criaturas de cauda longa que te alimentaram
Choram por ti.
Todas as coisas agrestes das campinas e dos pastos,
As trilhas que amavas na floresta dos cedros,
Noite e dia murmuram.
Que os homens ilustres de Uruk,
A cidade das poderosas muralhas,
Chorem por ti;
Que o dedo que abençoa
Se estenda para pranteá-lo.
Enkidu, meu jovem irmão, ouve,
Um eco atravessa todo o país
Como um lamento de mãe.
Choram todos os caminhos que juntos percorremos,
E as feras que caçamos: o urso e a hiena,
O tigre e a pantera, o leopardo c o leão,
O veado e o cabrito montes, o touro c a corça.
Os rios cujas margens percorríamos
Choram por ti,
O Ula do Elam e o querido Eufrates,
De onde tirávamos água para os odres.
A montanha que escalamos para o Sentinela matar
Chora por ti.
Os guerreiros de Uruk,
Cidade das poderosas muralhas,
Onde o Touro do Céu foi morto,
Choram por ti.
Todo o povo de Endu
132
Chora por ti, Enkidu.
Aqueles que trouxeram cereais para conteres
Choram agora por ti;
Que o óleo em tuas costas esfregavam
Choram agora por ti;
Que te enchiam o copo de cerveja
Choram agora por ti;
A meretriz que com o perfumado ungüento te untava
Lamenta-se agora por ti;
As mulheres do palácio, que te deram uma esposa,
Um grupo seleto de boas conselheiras,
Lamentam-se agora por ti.
E os jovens, teus irmãos,
Como se fossem mulheres
De cabelos compridos choram por ti.
Que sono é este que em seu poder te mantém?
Estas perdido no escuro e não me podes ouvir."
Gilgamesh tocou o coração de Enkidu, mas ele já não batia; seus
olhos também não tornaram a se abrir. Gilgamesh então cobriu o
amigo com um véu, como o noivo cobre a noiva. E pôs-se a urrar, a
desabafar sua fúria como um leão, como uma leoa cujos filhotes lhe
foram roubados. Vagueou em torno da cama, arrancou seus cabelos e
os espalhou por toda parte. Arrancou seus magníficos mantos e atirou-
os ao chão como se fossem abominações.
Ao primeiro brilho da alvorada, Gilgamesh gritou: "Fiz com que te
deitasses num leito real, te reclinaste sobre um diva à esquerda de meu
trono, os príncipes da terra beijaram teus pés. Farei com que todo o
povo de Uruk chore por ti e te cante hinos fúnebres. As pessoas alegres
se curvarão de dor; e, depois de desceres à terra, deixarei que meu
cabelo cresça em tua homenagem e errarei pelas matas na pele de
um leão." De novo no dia seguinte, ao primeiro brilho da aurora,
Gilgamesh se lamentou; por sete dias e sete noites ele chorou por
Enkidu, até que os vermes tomaram-lhe o corpo. Somente então
Gilgamesh entregou Enkidu à terra, pois os Anunnaki, os juizes do mundo
inferior, o haviam capturado.
Gilgamesh então mandou proclamar um edito por todo país. Ele
convocava todos os caldeireiros, ourives e pedreiros e os intimava:
"Fazei uma estátua de meu amigo." A estátua foi moldada com grande
quantidade de lápis-lazuli no peito e de ouro no resto do corpo. Foi
então montada uma mesa de madeira de lei, e em cima dela foram
colocadas uma tigela de cornalina cheia de mel e uma de lápis-lazuli
contendo manteiga. Gilgamesh as ofereceu ao Sol, e, chorando, partiu.
4. A busca da vida eterna
Gilgamesh chorou amargamente por seu amigo Enkidu. Ele errou
pelas matas como um caçador e vagueou pelas planícies. Em sua
tristeza ele gritou: "Como posso descansar, como posso ficar em paz? O
desespero se instalou em meu coração. Isso que meu irmão é agora, o
mesmo serei eu quando morrer. Por medo da morte farei o possível para
encontrar Utnapishtim, a quem chamam o Longínquo, pois ele se juntou
à assembléia dos deuses." Gilgamesh então correu o mundo selvagem;
vagou pelos campos e pastos numa longa jornada em busca de
Utnapishtim, a quem os deuses acolheram após O dilúvio e instalaram
na terra de Dilmum, no jardim do sol; e somente a ele, entre todos os
homens, os deuses concederam a vida eterna.
A noite, chegando ao desfiladeiro da montanha, Gilgamesh
rezou: "Neste desfiladeiro, há muito tempo atrás, encontrei leões. Tive
medo e elevei meu olhar para a lua. Eu rezei e os deuses escutaram
minha prece; por isso agora, oh, Sin, deus da lua, protegei-me." Após a
oração, ele se deitou para dormir, até ser acordado de um sonho. Ele se
viu rodeado de leões que se regozijavam de estarem vivos; tomou
então o machado nas mãos, sacou a espada de seu cinturão e se
lançou sobre eles como uma flecha disparada por um arco. Ele
golpeou as feras, matou-as e dispersou-as.
Finalmente Gilgamesh chegou a Mashu, as grandes montanhas
que guardam o nascer e o pôr do sol e sobre as quais ele havia ouvido
muitas histórias. Seus picos são gêmeos e da altura das muralhas do céu;
suas encostas descem até o mundo inferior. Os Escorpiões vigiam sua
entrada. Eles são metade homem e metade dragão; sua fama inspira
terror, seu olhar é mortal aos homens e o brilho tremeluzente que deles
emana varre as montanhas que guardam o nascer do sol. Ao vê-los,
Gilgamesh protegeu os olhos, mas apenas por alguns momentos; ele
então tomou coragem e se aproximou. Vendo-o com um ar tão
impávido, o Homem-Escorpião gritou para seu companheiro: "Este que
ora se aproxima tem a carne dos deuses." Seu companheiro respondeu:
"Ele é dois terços deus, mas um terço homem."
Ele então gritou para o homem Gilgamesh, ele gritou para o filho
dos deuses: "Por que fizeste tão longa jornada? Por que viajaste de tão
longe, cruzando os perigosos mares? Dize-me a razão de tua vinda."
Gilgamesh respondeu: "Por Enkidu, a quem muito amava. Juntos
enfrentamos todos os tipos de dificuldade. Por causa dele eu vim, pois
caiu vítima do destino que assola os homens. Chorei por ele noite e dia
e me recusava a entregar seu corpo para o funeral. Pensei que meu
pranto fosse trazê-lo de volta. Desde sua partida minha vida deixou de
ter sentido; por isso viajei até aqui em busca de Utnapishtim, meu pai;
pois diz-se que ele se juntou aos deuses e que encontrou a vida eterna.
Desejo fazer-lhe algumas perguntas com relação aos vivos e os mortos."
O Homem-Escorpião abriu a boca e disse, falando a Gilgamesh:
"Nenhum homem nascido de mulher fez o que tu pedes, nenhum mortal
jamais entrou na montanha. Ela se estende por doze léguas de
escuridão; não há luz em seu interior e o coração se sente oprimido
pelas trevas. Do nascer ao pôr do sol, não há nada além de escuridão."
Gilgamesh disse: "Embora seja para mim um caminho de tristeza e dor,
de gemidos e lágrimas, ainda assim devo tomá-lo. Abri o portão da
montanha." E o Homem-Escorpião disse: "Vai, Gilgamesh. Permitirei que
atravesses a montanha de Mashu e as elevadas cordilheiras; que teus
pés te levem ao destino em segurança. O portão da montanha está
aberto."
Gilgamesh escutou o que o Homem-Escorpião lhe disse e seguiu,
através da montanha, pela estrada do sol até o lugar de seu nascente.
Depois de caminhar por uma légua, a escuridão se intensificou ao seu
redor, pois não havia mais luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o
que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de duas léguas a
escuridão era intensa e não havia luz; ele não conseguia enxergar
nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de
três léguas a escuridão era intensa e não havia luz; ele não conseguia
enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás.
Depois de quatro léguas a escuridão era intensa e não havia luz; ele
não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que
estava atrás. Ao final de cinco léguas a escuridão era intensa e não
havia luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente
nem o que estava atrás. Ao final de seis léguas a escuridão era intensa
e não havia luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à
frente nem o que estava atrás. Depois de percorrer sete léguas a
escuridão era intensa e não havia luz; ele não conseguia enxergar
nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de
percorrer oito léguas, ele soltou um grande grito, pois a escuridão era
intensa e ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente
nem o que estava atrás. Depois de nove léguas, ele sentiu o vento norte
em seu rosto, mas a escuridão era intensa e não havia luz; ele não
conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que
estava atrás. Depois de dez léguas, o final estava próximo. Depois de
onze léguas apareceram os primeiros raios da alvorada. Ao final de
doze léguas a luz do sol enfim refulgiu.
Lá estava o jardim dos deuses; por todos os lados cresciam
arbustos carregados de pedras preciosas. Ao vê-los, ele imediatamente
se aproximou, pois havia frutas de cornalina pendendo de uma parreira,
lindas de ver; folhas de lápis-lazúli cresciam em profusão por entre as
frutas e eram doces ao olhar. No lugar dos espinhos e dos cardos
encontravam-se as hematitas e as pedras raras, e mais a ágata e
pérolas do mar. Shamash viu Gilgamesh caminhando pelo jardim à
beira do mar, e ele viu que o herói estava vestido com peles de animais
e que se alimentava de sua carne. Isto o aborreceu, e falando ele disse:
"Nenhum mortal jamais tomou este caminho antes, nem tomará,
enquanto os ventos soprarem por sobre os mares." E virando-se para
Gilgamesh ele falou: "Jamais encontrarás a vida que procuras."
Gilgamesh respondeu ao glorioso Shamash: "Então, depois de errar e me
esfalfar pela vastidão selvagem, terei ainda de dormir e deixar que a
terra cubra para sempre a minha cabeça? Que meus olhos fitem o sol
até seu brilho ofuscá-los. Embora não seja melhor que um homem
morto, ainda assim deixai-me contemplar a luz do sol." Ao lado do mar
ela vive, a mulher do vinhedo, a fabricante de vinho. Siduri fica sentada
no jardim à beira do mar, com a tigela e os tonéis de ouro que os
deuses lhe deram. Ela está coberta por um véu e, de onde se encontra,
vê Gilgamesh se aproximar, vestindo peles, com a carne dos deuses no
corpo, mas com o desespero no coração. Seu rosto era como o de
alguém que chegou de uma longa jornada. Ela olhou e, observando
com atenção o que se passava a distância, disse para si mesma: "Trata-
se sem dúvida de um criminoso; aonde estará indo?" E ela fechou o
portão com a tranca e passou-lhe o ferrolho. Mas Gilgamesh, ao ouvir o
barulho do ferrolho, lançou a cabeça para a frente e deteve a porta
com o pé. Ele gritou para Siduri: "Jovem fabricante de vinho, por que
trancas tua porta? O que viste que te fez trancar teu portão? Quebrarei
tua porta e arrebentarei teu portão, pois sou Gilgamesh, que capturou e
matou o Touro do Céu. Eu matei o sentinela da floresta de cedro,
derrubei Humbaba que vivia na floresta e matei os leões no desfiladeiro
da montanha."
Siduri então disse a ele: "Se és o Gilgamesh que capturou e matou
o Touro do Céu, que matou o sentinela da floresta de cedro, que
derrubou Humbaba que vivia na floresta e matou os leões no
desfiladeiro da montanha, por que tens as faces tão encovadas e o
rosto tão abatido? Por que trazes o desespero em teu coração, e por
que teu rosto lembra o de alguém que chega de uma longa jornada?
Sim, por que tua face está queimada pelo calor e pelo frio, e por que
chegas aqui vagando pelos pastos à procura do vento?"
Gilgamesh respondeu-lhe: "E por que meu rosto não haveria de
estar encovado e abatido? Trago o desespero em meu coração; meu
rosto lembra o de alguém que chega de uma longa jornada e foi
queimado pelo calor e pelo frio. Por que não haveria de vagar pelos
pastos à procura do vento? Meu amigo, meu irmão mais novo, que
caçava o asno selvagem e a pantera das campinas, meu amigo, meu
irmão mais novo, que capturou e matou o Touro do Céu e derrubou
Humbaba na floresta de cedro, meu amigo, alguém que me era
caríssimo e que enfrentou muitos perigos ao meu lado, Enkidu, meu
irmão, a quem tanto amava, a morte o alcançou. Chorei por ele
durante sete dias e sete noites, até os vermes tomarem-lhe o corpo. Por
causa do meu irmão, tenho medo da morte; por causa do meu irmão,
vagueio pelas matas e pelos campos e não consigo descansar. Mas
agora, oh, jovem que prepara o vinho, já que vi tua face, não permita
que eu veja a face da morte a quem tanto temo."
Ela respondeu: "Gilgamesh, onde vais com tanta pressa? Jamais
encontrarás a vida que procuras. Quando os deuses criaram o homem,
eles lhe destinaram a morte, mas a vida eles mantiveram em seu próprio
poder. Quanto a ti, Gilgamesh, enche tua barriga de iguarias; dia e
noite, noite e dia, dança e sê feliz, aproveita e deleita-te. Veste sempre
roupas novas, banha-te em água, trata com carinho a criança que te
tomar as mãos e faze tua mulher feliz com teu abraço; pois isto também
é o destino do homem."
Mas Gilgamesh disse a Siduri, a jovem: "Como posso ficar calado,
como posso descansar, quando Enkidu, a quem amo, tornou-se pó, e
quando também por mim a morte e a terra esperam? Vives à beira do
oceano e vês o seu interior; dize-me, oh, jovem, como chegar a Utnapishtim,
o filho de Ubara-Tutu. O que preciso saber para chegar até
ele? Instruí-me, dize o que tenho de fazer. Atravessarei o Oceano se isto
for possível; se não for, vagarei por regiões ainda mais desoladas." A
fabricante de vinho lhe disse: "Gilgamesh, não há como atravessar o
Oceano; todos os que aqui vieram, desde os dias de outrora, não
conseguiram viajar pelo mar. O Sol em sua glória atravessa o Oceano,
mas quem além de Shamash jamais logrou tal feito? O lugar é perigoso
e a passagem difícil; as águas da morte que por ali correm são
profundas. Gilgamesh, como vais atravessar o Oceano? Quando
chegares às águas da morte, o que farás? Mas, Gilgamesh, no meio da
floresta encontrarás Urshanabi, o barqueiro de Ut-napishtim; com ele
estão os objetos sagrados, os objetos de pedra. Ele está talhando a
proa do barco em forma de serpente. Observa-o bem. Se for possível,
talvez consigas atravessar as águas do Oceano com ele; se não, terás
de voltar."
Ao ouvir isso, Gilgamesh ficou furioso. Ele tomou o machado em
uma das mãos e sacou o punhal de seu cinturão. Gilgamesh avançou
furtivamente e se atirou como um dardo em cima dos apetrechos do
barco. Então voltou para dentro da floresta e sentou-se. Urshanabi viu o
brilho da faca e escutou o machado, e ficou perplexo, pois Gilgamesh,
em sua fúria, havia destroçado o equipamento da embarcação.
Urshanabi disse a ele: "Dize-me, qual é o teu nome? Sou Urshanabi, o
barqueiro de Utnapish-tim, o Longínquo." Ele lhe respondeu: "Gilgamesh
é meu nome. Sou de Uruk, da casa de Anu." Urshanabi perguntou-lhe
então: "Por que tens as faces tão encovadas e o rosto tão abatido? Por
que trazes o desespero em teu coração, e por que teu rosto lembra o
de alguém que chega de uma longa jornada? Sim, por que tua face
está queimada pelo calor e pelo frio, e por que chegas aqui vagando
pelos pastos à procura do vento?"
Gilgamesh disse-lhe: "E por que meu rosto não haveria de estar
encovado e abatido? Trago o desespero em meu coração; meu rosto
lembra o de alguém que chega de uma longa jornada e foi queimado
pelo calor e pelo frio. Por que não haveria de vagar pelos pastos à
procura do vento? Meu amigo, meu irmão mais novo, que capturou e
matou o Touro do Céu e derrubou Humbaba na floresta de cedro, meu
amigo, alguém que me era caríssimo e que enfrentou muitos perigos ao
meu lado, Enkidu, meu irmão, a quem tanto amava, a morte o
alcançou. Chorei por ele durante sete dias e sete noites, até os vermes
tomarem-lhe o corpo. Por causa do meu irmão, tenho medo da morte;
por causa do meu irmão, vagueio pelas matas e pelos campos. Seu
destino pesa sobre mim. Como posso descansar, como posso ficar em
paz? Ele virou pó e também eu vou morrer e ser enterrado para sempre.
Tenho medo da morte; por isso, Urshanabi, mostre-me o caminho para
chegar até Utnapishtim. Se for possível, atravessarei as águas da morte,
se não for, vagarei por regiões ainda mais desoladas."
Urshanabi disse a ele: "Gilgamesh, foram tuas próprias mãos que
tornaram impossível tua travessia do Oceano; ao destruíres o
equipamento do barco, destruíste também sua segurança." Os dois
então discutiram o assunto e Gilgamesh disse: "Por que estás tão
zangado comigo, Urshanabi? Pois tu mesmo atravessas o mar dia e
noite; em qualquer estação tu o atravessas." "Gilgamesh, estes objetos
que destruíste tinham a propriedade de levar-me por sobre as águas da
morte, impedindo-as de tocarem em mim. Era por esta razão que eu os
preservava, mas tu os destruíste, e com eles liquidaste também as
serpentes urnu. Mas vai agora à floresta, Gilgamesh, corta com teu
machado cento e vinte toras de sessenta côvados de cumprimento,
pinta-as com betume, reforça-as com virolas e traze-as de volta para
mim."
Ao ouvir isso, ele foi à floresta, cortou cento e vinte toras de
sessenta côvados de cumprimento, pintou-as com betume, reforçou-as
com virolas e trouxe-as de volta para Urshanabi. Eles então subiram no
barco, Gilgamesh e Urshanabi, e o lançaram sobre as ondas do
Oceano. Durante três dias eles singraram o mar com velocidade,
percorrendo o equivalente a uma jornada de um mês e quinze dias.
Urshanabi por fim levou o barco às águas da morte. Ele então disse para
Gilgamesh: "Vai em frente, pega uma das toras e empurra-a para
dentro do mar, mas não encostes tua mão na água. Gilgamesh, pega
uma segunda tora, uma terceira, uma quarta. Agora, Gilgamesh, pega
uma quinta, uma sexta e uma sétima tora. Gilgamesh, pega uma
oitava, uma nona e uma décima tora. Gilgamesh, pega uma décima
primeira; pega uma décima segunda tora." Depois de empurrar para
dentro d'água cento e vinte toras, Gilgamesh ficou sem nenhuma. Ele
então tirou a roupa e elevou seus braços para cima para servir de
mastro, e usou suas vestimentas como vela. Assim Urshanabi, o
barqueiro, trouxe Gilgamesh até Utnapishtim, a quem chamam o
Longínquo e que vive em Dilmun, a leste da Montanha, no lugar por
onde transita o sol. Somente a ele, entre todos os homens, os deuses
concederam a vida eterna.
Enquanto isso, Utnapishtim, confortavelmente instalado,
observava tudo a distância e, dentro de seu coração, meditava: "Por
que o barco navega por aqui sem seu mastro e sem equipamento? Por
que foram destruídas as pedras sagradas, e por que o barco não é
conduzido por seu capitão? Aquele homem que chega não é um dos
meus; vejo um homem coberto com pele de animais. Quem é este que
vem pela praia atrás de Urshanabi, pois certamente que não é um dos
meus homens?" Utnapishtim então olhou para ele e disse: "Qual é o teu
nome, tu que chegas vestido de pele de animais, com as bochechas
famintas e o rosto abatido? Aonde vais com pressa? Por que razão
fizeste uma jornada tão longa, atravessando mares cuja passagem é
tão difícil? Dize-me a razão de tua vinda."
Ele respondeu: "Gilgamesh é meu nome. Sou de Uruk, da casa de
Anu." Utnapishtim então disse a ele: "Se és Gilgamesh, por que tens as
faces tão encovadas e o rosto tão abatido? Por que trazes o desespero
em teu coração, e por que teu rosto lembra o de alguém que chega
de uma longa jornada? Sim, por que tua face está queimada pelo calor
e pelo frio, e por que chegas aqui vagando pelos pastos à procura do
vento?"
Gilgamesh disse-lhe: "E por que meu rosto não haveria de estar
encovado e abatido? Trago o desespero em meu coração; meu rosto
lembra o de alguém que chega de uma longa jornada e foi queimado
pelo calor e pelo frio. Por que não haveria de vagar pelos pastos à
procura do vento? Meu amigo, meu irmão mais novo, que capturou e
matou o Touro do Céu e derrubou Humbaba na floresta de cedro, meu
amigo, alguém que me era caríssimo e que enfrentou muitos perigos ao
meu lado, Enkidu, meu irmão, a quem tanto amava, a morte o
alcançou. Chorei por ele durante sete dias e sete noites, até os vermes
tomarem-lhe o corpo. Por causa do meu irmão, tenho medo da morte;
por causa do meu irmão, vagueio pelas matas e pelos campos. Seu
destino pesa sobre mim. Como posso descansar, como posso ficar em
paz? Ele virou pó e também eu vou morrer e ser enterrado para
sempre." Gilgamesh tornou a dizer, falando a Utnapishtim: "Foi para ver
Ut-napishtim, a quem chamamos o Longínquo, que fiz esta jornada. Por
isso vagueei pelo mundo, atravessei tantas cordilheiras perigosas, cruzei
os mares e me esfalfei viajando; minhas juntas doem e há muito que já
não sei o que é uma doce noite de sono. Minhas roupas se
esfarraparam antes de chegar à casa de Siduri. Matei o urso e a hiena,
o leão e a pantera, o veado e o cabrito montes, o tigre e todos os tipos
de caça, e também as pequenas criaturas dos pastos. Comi sua carne
e vesti suas peles; e foi assim que cheguei ao portão da jovem
fabricante de vinho, que fechou contra mim seu portão de piche e
betume. Mas recebi dela instruções sobre a jornada e cheguei então
até Urshanabi, o barqueiro, com quem atravessei as águas da morte.
Oh, pai Utnapishtim, tu que te juntas-te à assembléia dos deuses, desejo
fazer-te algumas perguntas sobre os vivos e os mortos: como encontrar
a vida que estou buscando?"
Utnapishtim disse: "Não existe permanência. Acaso construímos
uma casa para que fique de pé para sempre, ou selamos um contrato
para que valha por toda a eternidade? Acaso os irmãos que dividem
uma herança esperam mantê-la eternamente, ou o período de cheia
do rio dura para sempre? Somente a ninfa da libélula despe-se da larva
e vê o sol em toda a sua glória. Desde os dias antigos, não existe
permanência. Como são parecidos os adormecidos e os mortos, eles
são como um retrato da morte. O que existe entre o servo e o senhor
depois de ambos terem cumprido seus destinos? Quando os Anunnaki,
os juizes do mundo inferior, se reúnem com Mammetum, a mãe dos
destinos, juntos eles decidem a sorte dos homens. Eles distribuem a vida
e a morte, mas o dia da morte eles não revelam."
Gilgamesh então disse a Utnapishtim, o Longínquo: "Olho para ti,
Utnapishtim, e vejo que és igual a mim; não há nada estranho em tuas
feições. Pensei que fosse encontrar um herói preparado para a batalha,
mas aqui estás, confortavelmente refestelado. Conta-me a verdade,
como foi que vieste a te juntar aos deuses e ganhaste a vida eterna?"
Utnapishtim disse a Gilgamesh: "Eu te revelarei um mistério; eu te
contarei um segredo dos deuses."
5. A história do dilúvio
"Conheces a cidade de Shurrupak, que fica às margens do
Eufrates? A cidade envelheceu, assim como os deuses que ah
moravam. Havia Anu, o senhor do firmamento e pai da cidade; o
guerreiro Enhl, seu conselheiro; Ninurta, o ajudante; e Ennugi, que
vigiava os canais. Entre eles também se encontrava Ea. Naqueles dias a
terra fervilhava, os homens multiplicavam-se e o mundo bramia como
um touro selvagem. Este tumulto despertou o grande deus. Enlil ouviu o
alvoroço e disse aos deuses reunidos em conselho: 'O alvoroço dos
humanos é intolerável, e o sono já não é mais possível por causa da
balbúrdia.' Os deuses então concordaram em exterminar a raça
humana. Foi o que Enlil fez, mas Ea, por causa de sua promessa, me
avisou num sonho. Ele denunciou a intenção dos deuses sussurrando
para minha casa de colmo: 'Casa de colmo, casa de colmo! Parede,
oh, parede da casa de colmo, escuta e reflete. Oh, homem de
Shurrupak, filho de Ubara-Tutu, põe abaixo tua casa e constrói um
barco. Abandona tuas posses e busca tua vida preservar; despreza os
bens materiais e busca tua alma salvar. Põe abaixo tua casa, eu te
digo, e constrói um barco. Eis as medidas da embarcação que deveras
construir: que a boca extrema da nave tenha o mesmo tamanho que
seu comprimento, que seu convés seja coberto, tal como a abóbada
celeste cobre o abismo; leva então para o barco a semente de todas
as criaturas vivas.'
"Quando compreendi, eu disse ao meu senhor: 'Sereis testemunha
de que honrarei e executarei aquilo que me ordenais, mas como
explicarei às pessoas, à cidade, aos patriarcas?' Ea então abriu a boca
e falou a mim, seu servo: 'Dize-lhes isto: Eu soube que Enlil está furioso
comigo e já não ouso mais caminhar por seu território ou viver em sua
cidade; partirei em direção ao golfo para morar com o meu senhor Ea.
Mas sobre vós ele fará chover a abundância, a colheita farta, os peixes
raros e as ariscas aves selvagens. A noite, o cavaleiro da tempestade
vos trará uma torrente de trigo.'
"Ao primeiro brilho da alvorada, toda a minha família se reuniu ao
meu redor; as crianças trouxeram o piche e os homens todo o resto
necessário. No quinto dia eu aprontei a quilha, montei a ossatura da
embarcação e então instalei o tabuado. O barco tinha um acre de
área e cada lado do convés media cento e vinte côvados, formando
um quadrado. Construí abaixo mais seis conveses, num total de sete, e
dividi cada um em nove compartimentos, colocando tabiques entre
eles. Finquei cunhas onde elas eram necessárias, providenciei as zingas
e armazenei suprimentos. Os carregadores trouxeram o óleo em cestas.
Eu joguei piche, asfalto e óleo na fornalha. Mais óleo foi consumido na
calafetagem, e mais ainda foi guardado no depósito pelo capitão da
nave. Eu abati novilhos para a minha família e matava diariamente uma
ovelha. Dei vinho aos carpinteiros do barco como se fosse água do rio,
vinho verde, vinho tinto, vinho branco e óleo. Fez-se então um
banquete como os que são preparados à época dos festejos do ano-
novo; eu mesmo ungi minha cabeça. No sétimo dia, o barco ficou
pronto.
"Foi com muita dificuldade então que a embarcação foi lançada
à água; o lastro do barco foi deslocado para cima e para baixo até a
submersão de dois terços de seu corpo. Eu carreguei o interior da nave
com tudo o que eu tinha de ouro e de coisas vivas: minha família, meus
parentes, os animais do campo — os domesticados e os selvagens — e
todos os artesãos. Eu os coloquei a bordo, pois o prazo dado por
Shamash já havia se esgotado; e ele disse: 'Esta noite, quando o
cavaleiro da tempestade enviar a chuva destruidora, entra no barco e
te fecha lá dentro.' Era chegada a hora. Caiu a noite e o cavaleiro da
tempestade mandou a chuva. Tudo estava pronto, a vedação e a
calafetagem; eu então passei o timão para Puzur-Amurri, o timoneiro,
deixando todo o barco e a navegação sob seus cuidados.
"Ao primeiro brilho da alvorada chegou do horizonte uma nuvem
negra, que era conduzida por Adad, o senhor da tempestade. Os
trovões retumbavam de seu interior, e, na frente, por sobre as colinas e
planícies, avançavam Shul-lat e Hanish, os arautos da tempestade.
Surgiram então os deuses do abismo; Nergal destruiu as barragens que
represavam as águas do inferno; Ninurta, o deus da guerra, pôs abaixo
os diques; e os sete juizes do outro mundo, os Anunnaki, elevaram suas
tochas, iluminando a terra com suas chamas lívidas. Um estupor de
desespero subiu ao céu quando o deus da tempestade transformou o
dia em noite, quando ele destruiu a terra como se despedaça um
cálice. Por um dia inteiro o temporal grassou devastadoramente,
acumulando fúria à medida que avançava e desabando
torrencialmente sobre as pessoas como os fluxos e refluxos de uma
batalha; um homem não conseguia ver seu irmão, nem podiam os
povos serem vistos do céu. Até mesmo os deuses ficaram horrorizados
com o dilúvio; eles fugiram para a parte mais alta do céu, o firmamento
de Anu, onde se agacharam contra os muros e ficaram encolhidos
como covardes. Foi então que Ishtar, a Rainha do Céu, de voz doce e
suave, gritou como se estivesse em trabalho de parto: 'Ai de mim! Os
dias de outrora estão virando pó, pois ordenei que se fizesse o mal; por
que fui exigir esta maldade no conselho dos deuses? Eu impus as
guerras para a destruição dos povos, mas acaso estes povos não
pertencem a mim, pois fui eu quem os criou? Agora eles flutuam no
oceano como ovas de peixe.' Os grandes deuses do céu e do inferno
verteram lágrimas e se calaram.
"Por seis dias e seis noites os ventos sopraram; enxurradas,
inundações e torrentes assolaram o mundo; a tempestade e o dilúvio
explodiam em fúria como dois exércitos em guerra. Na alvorada do
sétimo dia o temporal vindo do sul amainou; os mares se acalmaram, o
dilúvio serenou. Eu olhei a face do mundo e o silêncio imperava; toda a
humanidade havia virado argila. A superfície do mar se estendia plana
como um telhado. Eu abri uma janelinha e a luz bateu em meu rosto. Eu
então me curvei, sentei e chorei. As lágrimas rolavam pois estávamos
cercados por uma imensidade de água. Procurei em vão por um
pedaço de terra. A quatorze léguas de distância, porém, surgiu uma
montanha, e ali o barco encalhou. Na montanha de Nisir o barco ficou
preso; ficou preso e não mais se moveu. No primeiro dia ele ficou preso;
no segundo dia ficou preso em Nisir e não mais se moveu. Um terceiro e
um quarto dia ele ficou preso na montanha e não se moveu. Um quinto
e um sexto dia ele ficou preso na montanha. Na alvorada do sétimo dia
eu soltei uma pomba e deixei que se fosse. Ela voou para longe, mas,
não encontrando um lugar para pousar, retornou. Então soltei uma
andorinha, que voou para longe; mas, não encontrando um lugar para
pousar, retornou. Então soltei um corvo. A ave viu que as águas haviam
abaixado; ela comeu, voou de um lado para o outro, grasnou e não
mais voltou para o barco. Eu então abri todas as portas e janelas,
expondo a nave aos quatro ventos. Preparei um sacrifício e derramei
vinho sobre o topo da montanha em oferenda aos deuses. Coloquei
quatorze caldeirões sobre seus suportes e juntei madeira, bambu, cedro
e murta. Quando os deuses sentiram o doce cheiro que dali emanava,
eles se juntaram como moscas sobre o sacrifício. Finalmente, então,
Ishtar também apareceu; ela suspendeu seu colar com as jóias do céu,
feito por Anu para lhe agradar. 'Oh, vós, deuses aqui presentes, pelo
lápis-lazúli que circunda meu pescoço, eu me lembrarei destes dias
como me lembro das jóias em minha garganta; não me esquecerei
destes últimos dias. Que todos os deuses se reúnam em torno do
sacrifício; todos, menos Enlil. Ele não se aproximará desta oferenda, pois
sem refletir trouxe o dilúvio; ele entregou meu povo à destruição.'
"Quando Enlil chegou e viu o barco, ele ficou furioso. Enlil se
encheu de cólera contra o exército de deuses do céu. 'Alguns destes
mortais escaparam? Ninguém deveria ter sobrevivido à destruição.'
Então Ninurta, o deus das nascentes e dos canais, abriu a boca e disse
ao guerreiro Enlil: 'E que deus pode tramar sem o consentimento de Ea?
Somente Ea conhece todas as coisas.' Então Ea abriu a boca e falou
para o guerreiro Enlil: 'Herói Enlil, o mais sábio dos deuses, como pudeste
tão insensatamente provocar este dilúvio?
Inflige ao pecador o seu pecado,
Inflige ao transgressor a sua transgressão,
Pune-o levemente quando ele escapar,
Não exageres no castigo ou ele sucumbirá;
Antes um leão houvesse devastado a raça humana
Em vez do dilúvio,
Antes um lobo houvesse devastado a raça humana
Em vez do dilúvio,
Antes a fome houvesse assolado o mundo
Em vez do dilúvio.
Antes a peste houvesse assolado o mundo
Em vez do dilúvio.
Não fui eu quem revelou o segredo dos deuses; o sábio soube
dele através de um sonho. Agora reuni-vos em conselho e decidi sobre
o que fazer com ele.'
"Enlil então subiu no barco, pegou a mim e a minha mulher pela
mão e nos fez entrar no barco e ajoelhar, um de cada lado, com ele no
meio. E tocou nossas testas para abençoar-nos, dizendo: 'No passado,
Utnapishtim era um homem mortal; doravante ele e sua mulher viverão
longe, na foz dos rios.' Foi assim que os deuses me pegaram e me
colocaram aqui para viver longe, na foz dos rios."
6. A volta
Utnapishtim disse: "Quanto a ti, Gilgamesh, quem irá reunir os
deuses por tua causa, de maneira a poderes encontrar a vida que estás
buscando? Mas, se quiseres, vem e põe-te à prova: terás apenas que
lutar contra o sono por seis dias e sete noites." Mas, enquanto Gilgamesh
estava lá sentado, descansando sobre as ancas, uma bruma de sono,
semelhante à lã macia cardada do velocino, pairou sobre ele, e
Utnapishtim disse a sua mulher: "Olha para ele agora, o homem forte e
poderoso que quer viver por toda a eternidade; as brumas do sono já
estão pairando sobre ele." Sua mulher replicou: "Toca no homem para
acordá-lo, para que possa retornar em paz ao seu país, voltando pelo
portão pelo qual entrou." Utnapishtim disse a sua mulher: "Todos os
homens são impostores, até a ti ele tentará enganar; por isso, põe-te a
assar pães, cada dia um, e coloca-os ao lado de sua cabeça; e marca
na parede o número de dias que ele dormiu."
Ela então se pôs a assar os pães, cada dia um, e a colocá-los ao
lado de cabeça de Gilgamesh, marcando na parede o número de dias
que ele vinha dormindo. Chegou o dia em que o primeiro pão estava
duro, o segundo parecia couro, o terceiro se encharcara, o bolor se
formara na crosta do quarto, o quinto havia mofado, o sexto estava
fresco e o sétimo ainda estava sobre as brasas. Utnapishtim então tocou
em Gilgamesh e ele acordou. Gilgamesh disse a Utnapishtim, o
Longínquo: "Eu mal havia começado a dormir quando tocaste em mim
e me acordaste." Mas Utnapishtim disse: "Conta estes pães e vê quantos
dias dormiste, pois o primeiro está duro, o segundo parece couro, o
terceiro está encharcado, a crosta do quarto está embolorada, o
quinto está mofado, o sexto está fresco e o sétimo ainda se encontrava
sobre as brasas incandescentes quando toquei em ti e te acordei."
Gilgamesh disse: "Oh, que farei, Utnapishtim, para onde irei? O ladrão
da noite já se apoderou do meu corpo, a morte habita o meu espaço;
encontro a morte onde quer que pouse meus pés."
Utnapishtim falou então a Urshanabi, o barqueiro: "Pobre de ti,
Urshanabi, de agora em diante este porto de abrigo te odeia; ele não
mais te acolherá, nem tampouco terás permissão para atravessar estas
águas. Vai, agora, banido destas margens. Mas este homem, a quem
conduziste, trazendo-o aqui, cujo corpo está coberto de imundície e
cujos membros perderam sua graça e encanto, tendo sido deteriorados
peIo uso de peles de animais, leva-o para se banhar. Ele então lavará
seus cabelos na água, deixando-os limpos como a neve; jogará fora
suas peles e deixará que as águas do oceano as levem para longe. A
beleza de seu corpo será então revelada. A fita que ele usa na testa
ficará como nova, e ele receberá roupas para cobrir sua nudez. Até
que ele chegue à sua cidade de origem e até que complete sua
jornada, estas roupas não darão sinal de uso e parecerão sempre
novas." Assim, Urshanabi pegou Gilgamesh e levou-o para se banhar. Ele
lavou seus cabelos, deixando-os limpos como a neve; ele jogou fora
suas peles, que foram levadas para longe pelo mar. A beleza de seu
corpo foi revelada. A fita que usava na testa ficou como nova, e ele
recebeu roupas para cobrir sua nudez, roupas que não dariam sinais de
uso, mas pareceriam sempre novas até que ele chegasse a sua cidade
de origem e sua jornada chegasse ao fim.
Então Gilgamesh e Urshanabi colocaram o barco na água,
embarcaram e se prepararam para partir; mas a mulher de Utnapishtim,
o Longínquo, disse ao marido: "Gilgamesh chegou aqui exausto, está
extenuado; o que darás a ele para levar de volta a seu país?" Então
Utnapishtim falou, e Gilgamesh tomou uma zinga em suas mãos e trouxe
o barco de volta à margem. "Gilgamesh, chegaste aqui exausto, e te
extenuaste; o que darei a ti para levares de volta a teu país?
Gilgamesh, eu te revelarei um segredo, é um mistério dos deuses que
estou te revelando. Existe uma planta que cresce sob as águas; ela tem
um espinho que espeta como o de uma rosa. Ela vai ferir tuas mãos,
mas, se conseguires pegá-la, terás então em teu poder aquilo que
restaura ao homem sua juventude perdida."
Ao ouvir isso, Gilgamesh abriu as comportas para que uma
corrente de água doce pudesse levá-lo ao canal mais profundo.
Amarrou pesadas pedras a seus pés e elas o arrastaram para baixo, até
o leito do rio. Lá ele encontrou a planta que crescia sob a água.
Embora ela o espetasse, Gilgamesh tomou-a nas mãos. Ele então cortou
as pesadas pedras presas a seus pés e as águas o carregaram,
atirando-o à margem. Gilgamesh disse para Urshanabi, o barqueiro:
"Vem ver esta maravilhosa planta. Suas virtudes podem devolver ao
homem toda a sua força perdida. Eu a levarei à Uruk das poderosas
muralhas. Lá, eu darei a planta aos anciãos para que a comam. O
nome dela será 'Os Velhos Voltaram A Ser Jovens'. E, finalmente, eu
mesmo a comerei e recuperarei toda a minha juventude perdida."
Gilgamesh então retornou pelo portão por onde havia entrado.
Gilgamesh e Urshanabi viajaram juntos. Depois das primeiras vinte
léguas, eles quebraram seu jejum; depois de mais trinta léguas, pararam
para passar a noite.
Gilgamesh encontrou um poço de água fresca e entrou nele
para se banhar; mas nas profundezas do poço havia uma serpente, e a
serpente sentiu o doce cheiro que emanava da flor. Ela saiu da água e
a arrebatou; e imediatamente trocou de pele e voltou para o fundo do
poço. Gilgamesh então sentou-se e chorou. As lágrimas corriam por seu
rosto e ele tomou a mão de Urshanabi: "Oh, Urshanabi, foi para isso que
esfalfei minhas mãos? Foi para isto que arranquei sangue de meu
coração? Nada obtive para mim, nada; mas a fera do poço agora
usufrui do meu esforço. A corrente já arrastou a planta por vinte léguas,
levando-a de volta aos canais onde a encontrei. Eu encontrei algo
prodigioso e agora o perdi. Deixemos o barco nesta margem e vamos
embora."
Depois de caminharem vinte léguas, eles quebraram seu jejum;
depois de trinta léguas, eles pararam para passar a noite. Em três dias
de viagem eles haviam percorrido a pé um percurso equivalente a uma
jornada de um mês e quinze dias. Ao completarem a jornada, eles
chegaram a Uruk, a cidade das poderosas muralhas. Gilgamesh falou a
ele, a Urshanabi, o barqueiro: "Urshanabi, sobe na muralha de Uruk,
inspeciona o terraço onde sua estrutura foi fundada, examina bem a
alvenaria de tijolos; vê se não foram usados tijolos cozidos. Não foram os
sete sábios que assentaram estas fundações? Um terço do todo é
cidade, um terço é jardim e um terço é campo, incluindo o períbolo da
deusa Ishtar. Estas partes e o períbolo formam toda a Uruk."
Isto também foi obra de Gilgamesh, o rei, que percorreu as
nações do mundo. Ele era sábio, ele viu coisas misteriosas e conheceu
muitos segredos. Ele nos trouxe uma história dos dias que antecederam
o dilúvio. Partiu numa longa jornada, cansou-se, exauriu-se em trabalhos
e, ao retornar, descansou e gravou na pedra toda a sua história.
7. A morte de Gilgamesh
O destino decretado por Enlil da montanha, o pai dos deuses, foi
cumprido: "No mundo inferior a escuridão vai mostrar-lhe uma luz: na
humanidade, por todas as gerações conhecidas, ninguém legará um
monumento que se compare ao dele. Os heróis e os sábios, como a lua
nova, têm seus períodos de ascensão e declínio. Os homens dirão:
'Quem jamais governou com tamanha força e tamanho poder?' Como
no mês escuro, no mês das sombras, sem ele não há luz. Oh, Gilgamesh,
era este o significado de teu sonho. Foi-te dado um trono, reinar era teu
destino; a vida eterna não era teu destino. Assim, não fiques triste, não
te atormentes, nem te deixes oprimir por causa disso. Ele te deu o poder
de atar e desatar, de ser as trevas e a luz da humanidade. Ele te
concedeu supremacia sem paralelo sobre o povo, vitória nas batalhas
de onde não escapam fugitivos; o sucesso é teu nas incursões militares e
nos implacáveis assaltos por ti empreendidos. Mas não abuses deste
poder; se justo com teus servos no palácio, faze justiça ante a face do
Sol."
O rei se deitou e não mais se levantara;
O Senhor de Kullab não mais se levantará;
Ele venceu o mal, ele não mais voltará;
Embora tivesse braços fortes, ele não mais se levantará;
Ele era sábio e tinha um belo rosto, ele não mais voltará;
Ele adentrou a montanha, ele não mais voltará;
Em seu leito fatídico ele jaz, ele não mais se levantará;
De seu divã multicolorido ele não mais voltará.
O povo da cidade, os grandes e os humildes, não estão em
silêncio. Eles se lamentam em voz alta; toda a humanidade se lamenta
em voz alta. O destino se cumpriu; como uma gazela apanhada num
laço, como um peixe fisgado, ele jaz estirado sobre a cama. O
desumano Namtar pesa sobre ele; Namtar, que não tem mão nem pé,
que não bebe água nem come carne.
Por Gilgamesh, filho de Ninsun, eles fizeram inúmeras oferendas;
sua esposa querida, seu filho, sua concubina, seus músicos, seu bufão e
todos os que pertenciam à sua casa; seus servos, seus camareiros, todos
os que viviam no palácio fizeram inúmeras oferendas a Gilgamesh, filho
de Ninsun, o coração de Uruk. Eles fizeram inúmeras oferendas a
Ereshkigal, a Rainha dos Mortos, e a todos os deuses do inferno. A
Namtar, que é o destino, eles fizeram oferendas. Pão para Neti, o
Sentinela do Portão; pão para Ningizzida, o deus da serpente, o senhor
da Arvore da Vida; pão também para Dumuzi, o jovem pastor, para Enki
e Ninki, para Endukugga e Nindukugga, para Enmul e Ninmul, todos eles
deuses ancestrais, antepassados de Enlil. Um banquete para Shulpae, o
deus dos festejos. Para Samuqan, o deus dos rebanhos, para a mãe
Ninhursag e para todos os deuses da criação, para a hoste do céu,
sacerdote e sacerdotisa fizeram inúmeras oferendas fúnebres.
Gilgamesh, o filho de Ninsun, jaz em seu túmulo. No lugar das oferendas
ele ofertou o pão, no lugar da libação ele derramou o vinho. Naqueles
dias partiu o senhor Gilgamesh, o filho de Ninsun, o rei, o incomparável,
um homem sem rival que não negligenciou Enlil, seu mestre. Oh,
Gilgamesh, senhor de Kullab, grande é a tua glória.
Glossário onomástico
Este glossário apresenta breves referências sobre os deuses,
personagens e lugares mencionados na Epopéia. Imputava-se aos
deuses, em diferentes épocas, uma grande variedade de atributos e
características, algumas vezes contraditórios entre si; apenas as que são
relevantes à Epopéia de Gilgamesh são mencionadas aqui. Os poucos
deuses e personagens que têm um papel mais importante na história
são descritos na Introdução. Nestes casos, uma referência no fim da
nota remete à página que contém a descrição. As remissões a outros
verbetes do Glossário são também são indicadas.
ADAD: Deus do clima, da chuva e da tempestade.
ANUNNAKI: Em geral, deuses do mundo inferior; eram os juizes dos
mortos e filhos de Anu.
ANSHAN: Um dos distritos do Elam, no sudoeste da Pérsia; era
provavelmente a fonte de suprimento de madeira para a fabricação
de arcos. Gilgamesh tem um "arco de Anshan".
ANTUM: Consorte de Anu.
ANU: O An sumério; pai dos deuses e deus do firmamento, o
"Grande Acima". Segundo a cosmogonia suméria, havia em primeiro
lugar o mar primitivo, de onde nasceu a montanha cósmica, que
continha o céu, "An", e a terra, "Ki"; eles foram separados por Enlil. An
então arrebatou o céu, e Enlil a terra. Anu mais tarde foi se tornando
cada vez mais uma figura de fundo; ele teve um importante templo em
Uruk.
APSU: O Abismo; as águas primevas sob a terra; na mitologia
posterior do Enuma Elish, Apsu representava mais especificamente a
água doce que se mistura à água salgada do mar e a um terceiro
elemento aquoso, possivelmente as nuvens, de onde foram gerados os
primeiros deuses. Achava-se que as águas de Apsu eram mantidas
estagnadas no mundo inferior por um "feitiço" de Ea, que as colocou
sob um sono mortal.
ARURU: Uma deusa da criação; criou Enkidu da argila à imagem
de Anu.
AYA: A alvorada, consorte do Deus-Sol Shamash.
BELIT-SHERI: Escriba dos deuses do mundo inferior.
DILMUN: O paraíso sumério, talvez o Golfo Pérsico, algumas vezes
descrito como "o lugar onde nasce o sol" e "A Terra dos Vivos"; o cenário
de um mito sumério da criação, e o lugar para onde Ziusudra, o herói
deificado da versão suméria do dilúvio, foi levado para viver
eternamente.
DUMUZI: A forma suméria de Tammuz; um deus da vegetação e
da fertilidade, e por isso deus do mundo inferior; também chamado de
"o Pastor" e "senhor dos oviários". Companheiro de Ningizzida "para toda
a eternidade", ele guarda o portão do céu. No texto sumério "A
Linhagem de Inanna", ele é apresentado como o marido da deusa
Inanna, a correspondente suméria de Ishtar. Segundo a lista dinástica
suméria, Gilgamesh descendia de "Dumuzi, um pastor".
EA: O Enki sumério; deus da água doce e da sabedoria, patrono
das artes e um dos criadores da humanidade, em relação à qual ele
geralmente demonstra boa vontade. O deus principal de Eridu, onde
tinha um templo, vivia "nas profundezas". Sua linhagem é pouco
conhecida, mas ele era provavelmente filho de Anu.
EANNA: O períbolo do templo em Uruk consagrado a Anu e Ishtar.
EGALMAH: O "Grande Palácio" em Uruk, o lar da deusa Ninsun,
mãe de Gilgamesh.
ENDUKUGGA: Com Nindukugga, deuses sumérios que vivem no
mundo inferior; pais de Enlil.
ENKIDU: Moldado em argila por Aruru, deusa da criação, segundo
a imagem e a "essência de Anu", o deus do céu, e de Ninurta, o deus
da guerra, Enkidu, o companheiro de Gilgamesh, representa o homem
selvagem e natural; ele foi mais tarde considerado o protetor ou deus
dos animais, e talvez tenha sido o herói de um outro ciclo de poemas.
ENLIL: Deus da terra, do vento e do ar universal; essencialmente,
espírito; o deus que executa as vontades e as funções de Anu. Segundo
a cosmogonia suméria, ele nasceu da união de An, o céu, com Ki, a
terra. Ele separou os dois e arrebatou a terra para si. Mais tarde,
suplantou Anu como o deus principal. Era o deus da cidade de Nippur.
ENMUL: Ver Endukugga.
ENNUGI: Deus da irrigação e inspetor dos canais.
ENUMA ELISH: A epopéia semítica da criação que descreve a
criação dos deuses, a derrota dos poderes do caos pelo jovem deus
Marduk e a criação do homem a partir do sangue de Kingu, o guerreiro
derrotado do caos. O título é tirado das primeiras palavras da epopéia
"Quando lá no alto..."
ERESHKIGAL: A Rainha do mundo inferior, deusa correspondente a
Perséfone; antes, era provavelmente uma divindade celeste. Segundo a
cosmogonia suméria, ela foi raptada para o mundo inferior após a
separação do céu e da terra. Ver p. 38.
ETANA: Lendário rei pós-diluviano de Kish; na epopéia que leva o
seu nome, ele foi levado ao céu nas costas de uma águia.
GILGAMESH: O herói da Epopéia; filho da deusa Ninsun e de um
sacerdote de Kullab. Quinto rei de Uruk depois do dilúvio, ficou famoso
como grande construtor e como juiz dos mortos. Um ciclo de poemas
épicos foi composto em torno de seu nome.
HANISH: Um arauto divino da tempestade e do mau tempo.
HOMEM-ESCORPIÃO: Junto com um monstro similar do sexo
feminino, é o sentinela da montanha onde o sol se põe ao cair da noite.
E representado nos sinetes e nos entalhos em marfim como uma figura
cuja parte superior do corpo é humana e a inferior animal, terminando
com a cauda de um escorpião. Segundo o Eluma Elish, foi criado pelas
águas primitivas para combater os deuses.
HUMBABA: Também Huwawa; sentinela da floresta de cedro que
opõe resistência a Gilgamesh e é morto por ele e por Enkidu. Uma
divindade da natureza, talvez um deus anatólio, elamita ou sírio.
IGIGI: Coletivo para designar os grandes deuses do céu.
IRKALLA: Outro nome de Ereshkigal, a Rainha do mundo inferior.
ISHTAR: A Inanna suméria; deusa do amor e da fertilidade e
também da guerra; era chamada a Rainha do Céu. Ela é filha de Anu e
padroeira de Uruk, onde tem um templo. Ver p. 36.
ISHULLANA: Jardineiro de Anu, outrora amado por Ishtar, a quem
rejeitou; ela o transformou numa toupeira ou numa rã.
Kl: A terra.
KULLAB: Bairro de Uruk.
LUGULBANDA: Terceiro rei da dinastia pós-diluviana de Uruk; deus,
pastor e herói de um ciclo sumério de poemas; protetor de Gilgamesh.
MAGAN: Uma região situada a oeste da Mesopotâmia, algumas
vezes o Egito ou a Arábia, outras vezes a terra dos mortos, o mundo
inferior.
MAGILUM: Significado incerto, talvez "o barco dos mortos".
MAMMETUM: Deusa ancestral responsável pelos destinos.
MASHU: A palavra significa "gêmeos" na língua acadiana. Uma
montanha com dois picos onde o sol se põe ao cair da noite e de onde
ele torna a aparecer na alvorada. Algumas vezes identificada com
Líbano e Antilíbano.
NAMTAR: A ruína, o destino em seu aspecto funesto, calamitoso e
maligno; representado como um demônio do mundo inferior e também
como o mensageiro e principal ministro de Ereshkigal; um portador da
peste e da doença.
NEDU: Ver Neti.
NERGAL: Deus do mundo inferior, algumas vezes descrito como
marido de Ereshkigal, ele é o tema central de um poema acadiano que
descreve seu traslado do céu para o mundo inferior; deus da praga.
NETI: A forma suméria de Nedu, o principal porteiro do mundo
inferior.
NINDUKUGGA: Com Endukugga, deuses ligados à paternidade,
que viviam no mundo inferior.
NINGAL: Consorte do Deus-Lua e mãe do Sol.
NINGIRSU: Uma forma mais primitiva do deus Ninurta; deus da
irrigação e da fertilidade.
NINGIZZIDA: Também Gizzida; um deus da fertilidade com o título
de "Senhor da Árvore da Vida"; algumas vezes é representado como
uma serpente com cabeça humana; posteriormente, tornou-se o deus
das curas e da magia; companheiro de Tammuz, ao lado de quem
tomava conta do portão do céu.
NINHURSAG: Deusa-mãe suméria; uma dos quatro principais
deuses sumérios, junto de An, Enlil e Enki; algumas vezes descrita como
consorte de Enki, ela criou toda a vegetação. Seu nome significa "a
Mãe"; é também chamada de "Nintu", senhora do nascimento, e Ki, a
terra.
NINKI: A "mãe" de Enlil, provavelmente uma variante de
Ninhursag.
NINLIL: Deusa do céu, da terra e do ar, e, sob certo aspecto,
também do mundo inferior; consorte de Enlil e mãe da Lua; cultuada
junto de Enlil em Nippur.
NINSUN: Mãe de Gilgamesh, uma deusa menor cujo lar ficava em
Uruk; era conhecida por sua sabedoria, e era a consorte de
Lugulbanda.
NINURTA: Forma posterior do deus Ningirsu. Deus das nascentes e
da irrigação, Ninurta era também guerreiro e deus da guerra, arauto e o
vento sul. Segundo um poema, ele no passado represou as águas
amargas do mundo inferior e venceu vários monstros.
NISABA: Deusa dos cereais.
NISIR: Este nome provavelmente significa "Montanha da
Salvação"; o topônimo é algumas vezes identificado com a cordilheira
Pir Oman Gudrun, ao sul da parte mais baixa de Zab, ou com o Ararat,
região montanhosa bíblica ao norte do Lago Van.
PUZUR-AMURRI: O timoneiro de Utna-pishtim durante o dilúvio.
SAMUQAN: Deus do gado.
SETE SÁBIOS: Os sábios que trouxeram a civilização às sete
cidades mais antigas da Mesopotâmia.
SHAMASH: O Utu sumério; o sol; para os sumérios, ele era
principalmente o juiz e o legislador, com alguns atributos ligados à
fertilidade. Para os semitas, era também um guerreiro vitorioso, o deus
da sabedoria, o filho de Sin e um deus "mais eminente e poderoso" que
seu pai. Shamash era irmão e mando de Ishtar. E representado com o
serrote com o qual corta suas decisões. Nos poemas, o nome "Shamash"
pode estar se referindo ao deus ou simplesmente ao sol.
SHULLAT: Um arauto divino das tempestades e do mau tempo.
SHULPAE: Divindade que presidia banquetes e festejos.
SHURRUPAK: A moderna Fará, que fica vinte e nove quilômetros a
noroeste de Uruk; uma das cidades mais antigas da Mesopotâmia e
uma das cinco apontadas pelos sumérios como tendo existido antes do
dilúvio. O lar do herói da história do dilúvio.
SIDURI: Entidade divina que preparava o vinho e a cerveja: ela
vive à beira do mar (talvez no Mediterrâneo), no jardim do sol. Seu
nome na língua hurriana significa "mulher jovem"; Siduri pode ser
também uma forma variante da deusa Ishtar.
SILILI: Mãe do garanhão; talvez uma égua divina.
SIN: O Nanna sumério, a lua. A principal divindade astral suméria,
pai de UtuShamash, o sol, e de Ishtar. Era filho de Enlil e Ninlil. Seu
principal templo ficava em Ur.
TAMMUZ: O Dumuzi sumério; o deus moribundo da vegetação,
pranteado por Ishtar, em torno do qual foram compostos vários
lamentos e ladainhas. Num poema acadiano, Ishtar desce ao mundo
inferior em busca de seu jovem marido Tammuz; mas, no poema
sumério no qual esta obra se baseia, é a própria Inanna a responsável
pelo envio de Dumuzi ao mundo inferior, por causa de seu orgulho e
para que servisse de penhor e garantia do retorno seguro da deusa ao
céu.
TOURO DO CÉU: Personificação da seca, criada por A nu para
Ishtar.
UBARA-TUTU: Rei de Shurrupak e pai de Utnapishtim. O único rei de
Kish, além de Ut-napishtim, apontado na lista dinástica antediluviana.
URSHANABI: O Sursunabu da versão babilônica arcaica. Barqueiro
de Utnapishtim, Ur-shanabi atravessa diariamente as águas da morte
que dividem o jardim do sol do paraíso onde Utnapishtim vive
eternamente (o Dilmun sumério). Ao aceitar Gilgamesh como
passageiro, ele acaba perdendo este privilégio e decide então
acompanhar Gilgamesh de volta a Uruk.
URUK: A Erech bíblica, atualmente conhecida como Warka,
situada ao sul da Babilônia, entre Fará {Shurrupak) e Ur. As escavações
mostram que desde muito cedo Uruk já era uma cidade importante,
possuindo grandes templos consagrados aos deuses Anut Ishtar.
Tradicionalmente, a cidade era rival e inimiga de Kish e após o dilúvio
tornou-se a sede de uma dinastia de reis, entre os quais se incluía
Gilgamesh, que foi o quinto e o mais famoso deles.
UTNAPISHTIM: Utanapishtim para os antigos babilônicos, Ziusudra
para os sumérios. Nos poemas sumérios, além de um rei sábio, Ziusudra
era sacerdote de Shurrupak; as fontes acadianas o descrevem como
um cidadão sábio de Shurrupak. Ele é filho de Ubara-Tutu, e seu nome é
geralmente traduzido por "Aquele que viu a vida". Era o protegido do
deus Ea, com a conivência de quem sobreviveu ao dilúvio na
companhia de sua família e das "sementes de todas as criaturas vivas";
depois disso, foi levado pelos deuses para viver para sempre "na foz dos
rios" e recebeu o epíteto de "o Longínquo"; ou, segundo as fontes
sumérias, foi viver no Dilmun, onde nasce o sol.
Apêndice: fontes
Já indicamos as principais fontes usadas para esta versão da
Epopéia (ver pp. 73-79). Para uma relação bibliográfica completa basta
consultar Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament,
organizado por James B. Pritchard; Gilgamesh et sa legende, do Cahiers
du Groupe François-Thureau-Dangin; e o Reallexikon der Assyriologie. O
que ora se segue é uma breve nota sobre a distribuição do material
textual entre as diferentes tábuas.
(i) O poema sumério "Gilgamesh e a Terra dos Vivos"; texto tirado
de quatorze tábuas encontradas em Nippur, de uma tábua achada em
Kish e de mais duas de origem desconhecida, totalizando 175 versos.
Todo este material data da primeira metade do segundo milênio e
cobre os seguintes incidentes: a amizade entre o Senhor Gilgamesh e
seu servo Enkidu; o desejo de deixar um nome para a posteridade; a
súplica a Utu (Shamash), que designa forças sobrenaturais para ajudálos;
o armamento de Gilgamesh e Enkidu; a partida com cinqüenta
companheiros; a derrubada do cedro; a fraque Journal of Near Eastern
Studies, 28, 1958, fornece uma versão ligeiramente diferente do
Conselho dos Deuses no sonho que Enkidu tem em seu leito de morte.
(v) Um fragmento hurrita, também vindo de Boghazköy, fornece
parte da jornada até Ut-napishtim. Ele foi publicado no Zeitschrift für
Assyriologie, 35, 1923.
(vi) Versões semíticas. Havia uma versão acadiana em uso no
Império Hitita, e fragmentos dela foram encontrados em Boghazköy;
mas a mais completa de todas as versões é a assíria. Ela foi escrita
originalmente em doze tábuas de seis colunas; cada tábua continha
aproximadamente trezentos versos. Partes de todas as doze tábuas
ainda existem; quase todas provêm da biblioteca do palácio de Nínive
e datam do século VII antes de Cristo. Baseado em material mais
antigo, este texto cobre todos os incidentes da história até o retorno da
busca de Utna-pishtim. O material está dividido da seguinte maneira: na
Tábua I, as descrições de Gilgamesh e Enkidu, até o fim do segundo
sonho de Gilgamesh sobre Enkidu. A Tábua II, bastante fragmentária,
provavelmente continha o encontro de Gilgamesh e Enkidu e a primeira
menção à floresta de cedro. A Tábua III, também bastante
fragmentária, provavelmente continha as entrevistas de Gilgamesh com
os conselheiros da cidade, com Ninsun, e a exortação a Enkidu. A
Tábua IV, da qual nos chegaram apenas alguns versos, provavelmente
cobria a jornada à floresta e a chegada ao portão. A Tábua V continha
a descrição da floresta, os sonhos na montanha e provavelmente o
encontro com Humbaba e seu assassinato. A Tábua VI continha o
encontro de Gilgamesh e Ishtar, a aventura do Touro do Céu e o
começo da doença de Enkidu. A Tábua VII trazia a continuação da
doença de Enkidu, seus sonhos e sua morte. A Tábua VIII relatava os
lamentos por Enkidu e provavelmente uma descrição do funeral. A
Tábua IX cobre a jornada de Gilgamesh em busca de Utnapishtim até o
encontro com Siduri. A Tábua X cobre o episódio de Siduri, o encontro
com Urshanabi e Utnapishtim. A Tábua XI é a mais completa e mais bem
preservada de todas, com trezentas linhas. Ela descreve o Dilúvio, os
testes a que Gilgamesh é submetido e seu retorno a Uruk. A recensão
assíria não faz qualquer menção à morte de Gilgamesh, e a décima
segunda e última tábua reconta um episódio independente, uma
versão alternativa à morte de Enkidu narrada na Tábua VIL A Tábua XII é
uma tradução direta de um original sumério, que também sobreviveu
parcialmente. A relação entre as duas versões foi discutida pelo Prof.
Kramer no Journal of American Oriental Society, 64, 1944, e por vários
escritores, especialmente L. Matous, em Gilgamesh et sa legende.
(vii) O fragmento acadiano de Sultantepe. Este material foi
escavado pelo Sr. Seton Lloyd e por Bay Nun Gokçe em 1951. Foram
encontradas duas tábuas de uma coluna cada; uma delas continha um
fragmento da doença de Enkidu e a outra o lamento de Gilgamesh
pelo amigo, e provavelmente também uma descrição do funeral e da
estátua de Enkidu erigida por Gilgamesh. Embora muito curtos, ambos
os fragmentos preenchem lacunas deixadas pela recensão de Nínive,
da qual diferem ligeiramente, e foram publicados no Journal of
Cuneiform Studies, 8, 1954, e no Anatolian Studies, II, 1952, pelo Dr.
Gurney, que considera os dois textos como tendo sido escritos por
aprendizes, devido a seus erros característicos.